Antes de abrir um exemplar de A Náusea, convém esconder os objetos cortantes da casa e verificar se o gás não está ligado. Uma visita ao analista ou um estoque de Rivotril também podem ser bem úteis, caso você seja do tipo melancólico. É que o primeiro romance escrito por Jean-Paul Sartre não é exatamente uma obra que fará você se sentir feliz por estar vivo e sair por aí cantando como se estivesse numa animação da Disney. Seguindo uma linha meio anti-autoajuda, o livro conta a história de jovem de 30 anos, desiludido com o presente e que simplesmente não vê muito sentido nessa coisa de existir. O pessimismo e a desesperança quase chegam a vazar das páginas, mas não se trata de um manual de suicídio e sim de uma profunda reflexão sobre enfrentar um dia depois do outro.
Antoine Roquentin é um jovem historiador que viajou por vários lugares, entre eles a África e a Ásia, e agora que voltou para sua cidade (a fictícia Bouville. Sendo que “boue”, em francês, significa “lama”) começa a perceber uma certa instabilidade na ordem das coisas. Ao observar com cuidado a si mesmo e o mundo ao redor, Roquentin, um pequeno-burguês, sente um mal-estar que se espalha por todos os cantos como se fosse uma névoa. Ele sente que essa vida de estudos e pequenas aventuras sexuais simplesmente não faz muito sentido e que a existência talvez seja apenas esse amontado de dias vazios que se acumulam para compor um passado do qual não nos orgulhamos.
Por ser um romance escrito por um pensador, poderíamos esperar um texto mais truncado e com digressões um tanto rocambolescas (desculpa aí, filósofos), mas Sartre até que se contém nisso de colocar todo o discurso filosófico na boca do personagem e elabora uma linguagem bastante lapidada. O ritmo angustiante que ele consegue empregar nos fluxos de consciência de Roquentin, principalmente nos momentos de crise, é coisa de quem tem as manhas de narrar (mérito também da tradutora, Rita Braga, que conseguiu transpor esse efeito para o português).
Sartre até que se contém nisso de colocar todo o discurso filosófico na boca do personagem e elabora uma linguagem bastante lapidada.
A figura do Autodidata, sujeito que Antoine conhece na biblioteca, parece representar parte dessa desesperança que o autor pretende discutir. O personagem que tenta inutilmente absorver todo o conhecimento do mundo de maneira enciclopédica, inclusive seguindo a ordem alfabética dos autores, serve de contraponto às improvisações do jazz, que tanto comovem o protagonista. Aliás, o último capítulo do livro é uma daquelas coisas perturbadoras, lindas e ao mesmo tempo tristes que marcam a vida do leitor, algo pra ficar guardado em nossos abismos interiores.
O que Antoine Roquentin está tentando fazer com o seu diário, em que conta as minúcias de seu cotidiano e de seus pensamentos, é basicamente fotografar o tempo, não necessariamente para eternizá-lo, mas para compreendê-lo, para fruir algum outro tipo de sentimento em meio a tanta solidão. Então quando reencontra a ex-mulher ou reconstrói o passado de uma figura histórica, ele não está interessado em retomar algo que foi perdido, mas sim em entender o que se perdeu dentro dele mesmo. Nesse sentido, é interessante observar que a banalidade cotidiana representada no livro pode se parecer muito com a banalidade de nossas próprias vidas, mas ali, por estar escrita e haver o distanciamento da caneta, ela ganha um significado muito maior. O personagem percebe essa questão com certa angústia disfarçada de ironia, mas no fundo ele está descobrindo a importância dos livros em sua vida.
O que A Náusea nos faz pensar, entre outras coisas, é que a arte reflete a perplexidade do homem diante da existência ao mesmo tempo em que também a torna mais suportável. É como se seguir em frente fosse um pouco menos dolorido quando temos a possibilidade de ouvir uma música que nos toca ou abrir um livro que nos transforma. E não se trata de mero escapismo, mas sim de um mergulho num lugar infinito em que é possível capturar o tempo.
A NÁUSEA | Jean-Paul Sartre
Editora: Nova Fronteira;
Tradução: Rita Braga;
Tamanho: 204 págs.;
Lançamento: Março, 2019 (atual edição).