“O tempo voa, o dia destrói a noite, a noite divide o dia e nós passaremos em branco”. Podemos acompanhar o autor nesta reflexão que divide o silêncio das horas, e conhecer as plurais faces de onde vivemos. Nós Passaremos em Branco é o primeiro livro de crônicas de Luís Henrique Pellanda, lançado em 2011 pela Arquipélago, muitas delas publicadas no site Vida Breve e com elementos presentes em publicações posteriores, como a linguagem lírica realçada em Asa de Sereia, segundo livro do autor neste gênero, e as atuais, no jornal Gazeta do Povo.
Um desses elementos é a cidade que se revela quando se anda com um bebê nos braços, na alcunha “o homem com a menina no colo”, usada pelo autor nas crônicas em que andou com sua filha. Às vezes Curitiba se revela mais gentil, ou pelo menos recua um passo antes de se preparar para a caça; de todo modo, as crônicas são um convite para um passeio.
Mas não do tipo turístico, maquiando a cidade como se o sol morasse nela, nem a julgando por suas estranhezas. Quem mora em Curitiba pode reconhecer os lugares mencionados – Praça Osório, Pracinha do Amor, Saldanha Marinho e Cruz Machado, e até ter passado perto de um acontecimento como os reunidos; apesar da ambientação, quem não mora ou não conhece a capital paranaense pode se sentir em casa, pois as crônicas tratam dos vínculos que criamos com o lugar em que moramos.
Pode ser de se afeiçoar a um restaurante ou nele ir por conveniência, e buscar nas faces alheias uma expressão inofensiva. Nunca se sabe quando terá que dividir a mesa com alguém desconhecido – que pode igualmente desconfiar de quem ameaça invadir a sua (ilusão de) privacidade se apossando da cadeira vaga logo em frente. E se acostumar com os frequentes da casa e suas manias nem sempre alimentares.
Quem não mora ou não conhece a capital paranaense pode se sentir em casa, pois as crônicas tratam dos vínculos que criamos com o lugar em que moramos.
Também pode ser de aliar memórias particulares a referências do cinema ou da música enquanto se passa por um lugar, passeando de uma a outra como se dobra uma esquina. E se ver ocupado pela conversa fiada de algum de seus habitantes, às vezes ansiosos por encontrar quem lhes dê uma migalha de atenção ou lhes preste um favorzinho.
O tal favor pode ser de tudo: lutar contra ‘anões filisteus’, publicar um manuscrito obscuro de quem gentilmente te convida para uma leitura, tirar fotografias suspeitas ou pegar um folheto distribuído no orelhão, que pode se revelar um ponto quente. Quente como a cidade pode se tornar, não por motivos climáticos mas por quem a constrói, a exemplo de uma galeria peculiar que Pellanda criou: a Antologia dos Demônios de Curitiba.
Recomenda-se evitar os olhados dessas crias, donas de poderes equivalentes àqueles da Medusa. “Muita gente se julga imune aos maus eflúvios desse espírito manipulador simplesmente por saber-se demasiado recatada, incapaz de expor-se ao ridículo, pelo menos a céu aberto e diante de estranhos” – como descrito em O Sombra-Amarrada. Suave inocência, vá lá, acreditar-se capaz de passar em branco na cidade sem deixar pegadas nela – afirmar o contrário é outra história.
NÓS PASSAREMOS EM BRANCO | Luis Henrique Pellanda
Editora: Arquipélago;
Tamanho: 192 págs.;
Lançamento: Agosto, 2011.
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