Em O Amigo (editora Instante, 2019, tradução de Carla Fortino), Sigrid Nunez nos apresenta uma narradora escritora que acabou de perder alguém querido. Trata-se de um escritor, que foi seu professor e já estava aposentado há alguns anos. Aparentemente mergulhado em depressão, ele acaba cometendo suicídio.
O sujeito – que dá pintas de ter sido um mulherengo, um professor sedutor de suas alunas e um escritor com muitos elementos misóginos, à la Philip Roth – deixa a ela uma herança inusitada: seu amado cachorro Apolo, um dogue alemão gigantesco que havia sido resgatado por ele. Uma espécie de presente de grego, que agora a escritora vai precisar se virar para dar conta. Ou ela o passa adiante, ou corre o risco de perder o seu pequeno apartamento onde animais não são permitidos.
Podemos apresentar assim a espinha dorsal desse belo romance de Nunez, vencedor do National Book Award e primeira obra da autora publicada no Brasil. Mas a verdade é que há muito mais contido nas páginas de O Amigo, que se revela um ensaio inspirado sobre as dores do luto, o valor da amizade, mas, sobretudo, sobre os desafios da escrita.
Impactada pela perda do seu mestre e amigo, a narradora dedica suas palavras para discorrer sobre as possibilidades de preservar a sua memória, ao mesmo tempo em que enfrenta, com dificuldades, o sofrimento que isso lhe causa. Mas honrar a sua vida é também falar sobre os poderes da escrita como uma ferramenta para a permanência.
‘O Amigo’: uma homenagem à amizade e à escrita

Além de falar do seu mentor, sem nunca nomeá-lo, a narradora de Sigrid Nunez – que também é, ela mesma, uma professora universitária – tece deliciosas considerações sobre o universo literário e sobre a sanha que acomete os que decidem habitar esse meio. Esses pitacos acontecem, por exemplo, na denúncia à grafomania (“agora todo mundo escreve, do mesmo jeito que todo mundo vai ao banheiro, e, ao ouvir a palavra dom, muitos querem sacar uma arma”) e na descrição do mercado editorial como “um bote afundando no qual muitas pessoas estão tentando entrar”.
A escrita não é ofício para os fracos de espírito. Além da concorrência, há muito ego a ser domado para poder lidar com as críticas que vêm de todos os lados – dos iguais e (heresia!) das novas gerações que não param de chegar.
A escrita não é ofício para os fracos de espírito, ela parece nos dizer. Além da concorrência, há muito ego a ser domado para poder lidar com as críticas que vêm de todos os lados – dos iguais e (heresia!) das novas gerações que não param de chegar, com suas novas demandas e limites. Essas mudanças, aliás, são parcialmente responsáveis pela derrocada do escritor, que já não se encaixava em um mundo no qual as alunas não aceitavam mais ser chamadas de “queridas”.
Frente a tudo isso, há também a vergonha de saber que escrever, esse fazer supérfluo, é para os poucos privilegiados. Ela interroga o seu interlocutor morto: “você zomba, mas não pode negar que escrever é uma atividade elitista e egoísta, realizada para chamar atenção e se promover no mundo, não para tornar o mundo mais justo”. Ainda assim, O Amigo é uma grande declaração de amor à essencialidade desse fazer inútil, sem a qual a vida seria muito pior.
E, por fim, há o doce Apolo, que atravessa toda a história em cenas de tensão (a narradora conseguirá ficar com ele?), enquanto nos apaixonamos por esse cão que está à altura dos seus iguais dentro do cânone literário (como Karenin em A Insustentável Leveza do Ser). Quem será o amigo do título: o escritor morto ou o imenso cão idoso? Sigrid Nunez não nos esclarece, mas nos leva pela mão até o fim deste romance comovente, estabelecendo uma amizade que permanece conosco mesmo depois de encerrada a leitura.
O AMIGO | Sigrid Nunez
Editora: Instante;
Tradução: Carla Fortino;
Tamanho: 192 págs.;
Lançamento: Dezembro, 2019.
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