Sempre que começam as especulações sobre os possíveis favoritos ao Prêmio Nobel de Literatura, a reação que o nome do escritor japonês Haruki Murakami recebe é bastante polarizada. Apesar do imenso sucesso comercial alcançado pelo autor a nível global, Murakami suscita uma reação mais dividida em alguns círculos críticos, onde seus romances não costumam ser vistos com os mesmos olhos do público internacional que devorou livros como 1Q84 e Kafka à beira-mar.
Independentemente dessa recepção polarizada, a fusão que Murakami faz entre a herança cultural de seu país e as influências de potências ocidentais como a Europa e os Estados Unidos abriu as portas para que milhões de leitores não-japoneses pudessem conhecer um pouco da literatura do Japão, nação que sempre produziu artistas, escritores e poetas de imensa técnica e sensibilidade.
Quando funcionam, suas obras, que costumam mesclar a morosidade da vida urbana com doses de surrealismo e episódios insólitos, podem suscitar discussões interessantes sobre a natureza da identidade e a fragilidade do nosso senso de percepção da realidade; quando não funcionam tão bem, acabam por pecar por uma mesmice que parece saltar das suas páginas quando o leitor já está familiarizado com as técnicas e as preferências narrativas do autor.
Eu já li isso
Infelizmente, o longo romance O assassinato do comendador, publicado no Brasil em 2018 pela editora Alfaguara, é um desses casos. De início, o livro parece promissor, apesar do protagonista ser imediatamente familiar; um homem na casa dos trinta em plena crise conjugal.
Após a súbita separação, o narrador-protagonista, cujo nome permanece desconhecido, dirige a esmo pelo país em busca de algum senso de propósito. Aqui, Murakami consegue trazer passagens de uma beleza sutil nos locais melancólicos pelos quais passeia ao longo da costa do Japão.
Porém, quando decide isolar-se nas montanhas para cuidar da casa de Tomohiko Amada, um velho artista de imenso renome que já está à beira da morte, os artifícios familiares de Murakami começam a mostrar as caras – e a trama de O assassinato do comendador começa a perder fôlego como um carro que lentamente esgota seu combustível.
As metáforas e imagens empregadas em O assassinato do comendador são constantemente enfraquecidas por serem excessivamente literais ou mesmo cômicas.
Quando o narrador descobre uma estranha pintura no sótão com o título O assassinato do comendador, a lógica que regia seu mundo até então se vê abalada e diversos acontecimentos fantásticos começam a desafiar suas concepções sobre a realidade. Quando o acúmulo desses eventos surreais é tamanho que o narrador já não pode mais negar seu destino, deve então enfrentar uma jornada por um estranho submundo, sacrificando algo para recuperar o que foi perdido.
Soa familiar? Pois é. Essas questões poderiam até ser interessantes, se já não tivessem sido trabalhadas pelo próprio Murakami de uma forma muito similar em Crônica do Pássaro de Corda e 1Q84.
De fato, para quem já leu esses dois romances anteriores, é impossível não listar mentalmente, à medida que se acompanha a trama, uma série de elementos cuja repetição é evidente e incômoda, deixando o leitor com uma perturbadora sensação de “Ei, eu já li isso”.
Comece por outro lugar
Essa sensação é agravada pelo fato de que a obra é longa e a trama se perde em devaneios que aumentam a extensão do texto de forma desnecessária, sem auxiliar na criação de qualquer tensão ou qualquer ponto de vista ou reflexão distinta daquelas trazidas anteriormente pelo autor.
Por outro lado, no último terço do livro, quando as coisas começam a se encaminhar para o clímax, tudo acontece de forma excessivamente acelerada e muito pouco coesa, culminando em um desfecho um tanto vazio e de pouca potência. Para piorar, as metáforas e imagens empregadas em O assassinato do comendador são constantemente enfraquecidas por serem excessivamente literais ou mesmo cômicas (de uma forma não intencional).
Para quem não estava familiarizado com outros livros do escritor como os já citados Crônica do Pássaro de Corda e 1Q84, a leitura desse romance mais recente pode ser interessante, mas não posso deixar de recomendar aos leitores que queiram começar a ler Murakami que comecem por alguma dessas obras ao invés de O assassinato do comendador.
O ASSASSINATO DO COMENDADOR | Haruki Murakami
Editora: Alfaguara;
Tradução: Rita Kohl;
Tamanho: 736 págs. (2 volumes);
Lançamento: Novembro, 2020 (edição com 2 volumes).