Parte do mérito dos autores de ficção científica está no quanto as suas obras permanecem atuais com o passar dos anos, já que em geral as distopias são exercícios de futurologia que não deixam de apresentar laços profundos com o passado. Se, por um lado, às vezes antecipam tecnologias, por outro, essas obras nos lembram de erros históricos que insistem em se repetir, como a existência de governos totalitários, por exemplo.
Sob esse aspecto de relevância que não permanece cravada no tempo e se estende ao longo das décadas, dá pra dizer com bastante convicção que O Conto da Aia, da canadense Margaret Atwood, beira a perfeição. O livro publicado em 1985 poderia muito bem ter sido escrito sob o zeitgeist de 2017. Ponto positivo pra ela enquanto escritora, ponto negativo pra nós enquanto humanidade, pois o romance nos apresenta uma realidade aterrorizante.
A premiada obra voltou aos holofotes em virtude de sua adaptação para a excelente série de TV The Handmaid’s Tale, estrelada por Elisabeth Moss. Em virtude do sucesso televisivo, o livro ganhou reedição com uma nova capa (e estava precisando mesmo, pois a anterior era de gosto bem duvidoso) pela editora Rocco, com tradução de Ana Deiró.
Em O Conto da Aia, Offred, uma mulher de 33 anos nos conta o cotidiano na República de Gilead, onde ela vive como uma Aia na casa de um comandante do alto escalão do Exército. Porém, ela não é apenas uma dama de companhia ou uma preceptora, pois nesse futuro distópico em que várias regiões foram devastadas pela radiação, boa parte das mulheres deixou de ser fértil, portanto, agora uma Aia tem apenas uma função: procriar. As famílias tradicionais que não conseguem mais ter filhos, passam a contar com uma escrava para isso.
Esse imbróglio ocorre devido a uma guerra que está em andamento onde antes eram os EUA e que deu origem a um governo teocrático, cujas leis são baseadas numa interpretação muito própria do Antigo Testamento, com direito a textos editados ou inventados de acordo com a conveniência. Basicamente, a galera rica utilizou a religião como subterfúgio para manter os seus privilégios e a exploração feminina numa escala monumental, enquanto a população mais pobre e as mulheres em geral pagavam o pato. Tudo isso, é claro, mantido na base da bala com o exército nas ruas, exterminando qualquer grupo que tentasse discordar de alguma coisa.
O fato de o sexo ser propositalmente misturado a uma espécie de rito religioso mecânico e repulsivo dá uma dimensão do quanto Atwood vai com os dois pés no peito das questões que pretende debater.
Nesse futuro medonho, os homens têm controle absoluto e as mulheres, em sua maioria retiradas à força de suas famílias, são proibidas de ler (as placas só possuem desenhos), são obrigadas a usar um uniforme, não podem olhar os homens diretamente nos olhos, não podem conversar sobre banalidades em público, praticamente só devem orar, fazer compras para seus comandantes e se submeter a um ritual de sexo bizarríssimo. Qualquer desvio dos padrões estabelecidos, como ser homossexual ou feminista, é passível de fuzilamento. Sim, parece a sua timeline do Facebook, só que na vida real.
O fato de o sexo ser propositalmente misturado a uma espécie de rito religioso mecânico e repulsivo dá uma dimensão do quanto Atwood vai com os dois pés no peito das questões que pretende debater, criticando não apenas as relações de poder da igreja (que desde sempre interferiu e condicionou a sexualidade de seus fiéis) como também as diferenças perversas de tratamento entre as classes sociais e entre os gêneros.
A autora é simplesmente brilhante na abordagem chocante e original do tema, e também na forma, no uso primoroso da linguagem, uma vez que observamos esses horrores a partir do ponto de vista de uma vítima (justamente aquela que costuma não ter voz quando falamos de intolerância e machismo). Chega a ser perturbadora a maneira como acompanhamos o raciocínio da protagonista sendo contaminado pelo sofrimento e a solidão aos quais é submetida. É principalmente essa sofisticação, do ponto de vista literário, que faz com que o romance não possa ser reduzido a uma perspectiva meramente panfletária.
Não creio que a literatura tenha a obrigação de ter alguma função predeterminada, mas me parece que livros como este escrito por Margaret Atwood representam um tipo leitura fundamental para compreender e ampliar a visão de mundo, quem sabe até para criar algum tipo de empatia e eliminar preconceitos com relação à luta pelos direitos da mulher. Nesse sentido, além de nos entreter com uma história tensa e cheia de momentos impactantes, um livro como esse teria função de alertar os leitores a respeito da gravidade de se misturar política e religião, bem como de escancarar o quanto o pensamento machista é retrógrado e danoso para uma sociedade.
São temas que eram relevantes nos anos 80 e que, infelizmente, permanecem atuais e devastadores no século XXI, por isso um livro como esse continua sendo tão importante, pois é um grito de alerta que ecoa ao longo das décadas e que precisa ser ouvido.
Enfim, parece-me que Margaret Atwood escreveu uma obra-prima da literatura contemporânea.
O CONTO DA AIA | Margaret Atwood
Editora: Rocco;
Tradução: Ana Deiró;
Tamanho: 368 págs.;
Lançamento: 1985 | Junho, 2017 (atual edição).