A doença mental, e seus desdobramentos, é, antes de tudo, uma produção social, uma divergência daquilo que se entende por padrão. Dessa ruptura, explica Foucault, nasce a alienação e a incomunicabilidade. A partir dessa perspectiva, é possível traçar um perfil das formas que a sociedade se compõe e se dilata – para o bem e para o mal. Qualquer elemento que fuja à normalidade é disposto em um grupo em separado.
O estranho caso do cachorro morto, best-seller de Mark Haddon, consegue se enredar com clareza no universo de um menino autista, Christopher, que, ao modo de Holden Caulfield, precisa tentar ler o mundo e descobrir o que está à sua frente. Como Salinger, Haddon não investiga apenas a mente do seu personagem, mas as suas interpretações do que está ao redor. Ambos se fundem na ideia de não pertencer a lugar algum, de se perceberem, desde muito cedo, como estrangeiros.
Escrito como espécie de livro-diário, O estranho caso do cachorro morto surge como uma tentativa de resolver o assassinato de um cachorro na vizinhança. À medida em que Christopher avança no seu jogo de detetive se depara também com o desconhecido dentro da sua própria casa. O romance – na verdade, um grande elogio à empatia – é uma jornada de amadurecimento, uma representação radical do final da inocência.
Como Salinger, Haddon não investiga apenas a mente do seu personagem, mas as suas interpretações do que está ao redor.
Labirinto
A mente é um grande labirinto. Oliver Sacks sabia disso e acreditava que estar doente ou ser saudável é uma questão de ponto de vista. Em O homem que confundiu sua mulher com um chapéu, o neurologista investiga as alucinações e a criação da moral partindo da ideia de moral.
Haddon segue o mesmo caminho, mas trata a doença como alguém de fora. Enquanto as neuroses e confusões são a pedra-fundamental da literatura de Kafka ou Robert Walser, em O estranho caso do cachorro morto é o contrário.
Nem o checo e nem o suíço teriam elaborado seus universos literários não fossem seus estados mentais. Haddon, por isso, constrói um retrato limitado, focado na identificação sentimental do leitor. A sensação de desconforto que atravessa O Processo ou Jakob von Gunten passa ao largo da vida de Christopher. Isso, obviamente, é intencional.
Viver é raro
Quando Cristovão Tezza publicou em 2007 O Filho Eterno, seu livro mais conhecido, o escritor curitibano inaugurava a década da autoficção, movimento literário que perdurou até 2016, quando Julián Fuks lançou A Resistência, talvez, a última grande obra a encarar os fatos pela olhar da ficcionalização do real. Mais importante, porém, foi pensar na literatura segundo a perspectiva da relação de um pai com seu filho com síndrome de Down.
Ainda que The curious case of the dog in the night-time esteja mais para David Copperfield ou As Aventuras de Huckleberry Finn que para o romance de Tezza, existe uma certa combinação de elementos – como os conflitos familiares e a incompreensão do todo – que os aproxima.
Em Haddon, há uma dose interessante de humor, sobretudo, na forma como Christopher lê o que está à sua volta. Mais inteligente e sensível que os garotos da sua idade, o pequeno narrador explora as obviedades dos discursos da vida adulta e as contradições entre direitos e deveres. É a ressiginificação da tradição de Pelos olhos de Maise e O sol é para todos, mas representa também a consciência de que, como diria Oscar Wilde, a maioria das pessoas não vive, apenas existe.
O estranho caso do cachorro morto é um retrato limitado, mas interessante, que consegue criar uma narrativa que oscila entre o humor elegante e a reflexão superficial.
O ESTRANHO CASO DO CACHORRO MORTO | Mark Haddon
Editora: Record;
Tradução: Luiz Antonio Aguiar;
Tamanho: 288 págs.;
Lançamento: Abril, 2004.