Na literatura, existem algumas obras que inadvertidamente acabam por fundar gêneros inteiros, ou ao menos atingem tal nível de popularidade que se tornam sinônimos daquele gênero aos olhos do público em geral. Uma dessas obras é o clássico O Hobbit (1937), de J. R. R. Tolkien, livro que abriu o caminho para o sucesso estrondoso de O Senhor dos Anéis e para uma legião de narrativas de “alta fantasia” fortemente influenciadas por Tolkien.
A alta fantasia (high fantasy) é um subgênero da literatura de fantasia cujas narrativas costumam se passar em cenários majoritariamente baseados na Europa medieval, com a presença de criaturas como dragões, elfos e anões e conflitos épicos entre reinos, heróis e vilões.
Como um dos mais populares subgêneros da fantasia, os best-sellers de alta fantasia frequentemente ofuscam obras fantásticas mais experimentais, que fogem às constrições específicas desse subgênero, e muitos usam o termo “fantasia” como se este se referisse exclusivamente à high fantasy e seus castelos e dragões.
Para entendermos como esse subgênero se tornou tão presente e influente na cultura pop atual, vale a pena analisarmos o legado de O Hobbit, o irmão ao mesmo tempo mais velho e mais novo de O Senhor dos Anéis, que atingiu um nível de fama e relevância popular muito maior do que o de seu predecessor, tendo uma renascença nos anos 2000 com a altamente aclamada trilogia de Peter Jackson (não falemos aqui da terrível adaptação cinematográfica de O Hobbit pelo mesmo diretor).
Por que ler O Hobbit?
O Hobbit, ou Lá e de volta outra vez (um título ao meu ver muito melhor), foi publicado em 1937 e desde então vem influenciando criadores nos mais diversos meios, do cinema aos videogames, e sua leitura permanece essencial para todos que se interessam pela alta fantasia e pelo fantástico em geral.
A alta fantasia (high fantasy) é um subgênero da literatura de fantasia cujas narrativas costumam se passar em cenários majoritariamente baseados na Europa medieval, com a presença de criaturas como dragões, elfos e anões e conflitos épicos entre reinos, heróis e vilões.
O tom adotado por Tolkien em O Hobbit, como o de um avô que conta uma antiga história a um neto, deixa claro que esta primeira obra não tem as mesmas pretensões de grandeza de O Senhor dos Anéis, com seu conflito épico que transcorre em três livros e envolve dezenas de personagens, batalhas e relações.
O Hobbit funciona mesmo oito décadas depois porque é uma narrativa que sabe o que é. Trata-se fundamentalmente de uma história para crianças, um conto de fadas à moda original, capaz de respeitar a inteligência da criança com a compreensão de que são maduras o suficiente para certos temas mas não para outros, e que lida com temas delicados como o medo, a insegurança, a vida e a morte.
No cerne emocional de O Hobbit está uma jornada excepcional empreendida por uma figura reconhecível em sua pequenez e fragilidade. Bilbo Bolseiro de Bolsão é, como o leitor o é ao se defrontar com a história pela primeira vez, ingênuo e alheio aos perigos do seu mundo; é, assim, uma figura identificável e capaz de carregar o peso emocional dessa jornada do início ao fim.
O uso de eventos episódicos ao longo da jornada funcionam para dar à jornada de Bilbo um ar de enorme magnitude, mesmo tratando-se de um livro curto e que pode facilmente ser lido por uma criança plenamente alfabetizada.
Para mim, a cena mais importante e emblemática do espírito de O Hobbit é o confronto de Bilbo e o estranho (mas perigoso) Gollum nas profundezas de uma caverna. Sem fazer uso da violência, Bilbo consegue derrotar o adversário utilizando-se apenas de sua inteligência e destreza, e o duelo de charadas entre essas duas icônicas personagens é um dos grandes confrontos de toda a fantasia.
O Hobbit está recheado de passagens como essa. Além de ser uma boa obra para introduzir crianças e adolescentes à literatura fantástica, é também uma leitura interessante para o leitor adulto, que pode reconhecer nas páginas de O Hobbit a base de grande parte da fantasia ocidental do século XX.
A saturação da high fantasy
O sucesso de O Hobbit e O Senhor dos Anéis permitiu que outros autores, como Robert Jordan e sua série A Roda do Tempo e as paródias do Discworld de Terry Pratchett, dessem continuidade a uma produção de alta fantasia que perdura até os dias de hoje na literatura, nos games e muito mais.
Porém, pode-se argumentar que o gênero atingiu um ponto de saturação após o desastroso desfecho de Game of Thrones, série que buscou subverter algumas das principais convenções da alta fantasia, mas que falhou ao entregar uma conclusão insatisfatória para as múltiplas questões que havia levantado. Desde então, a influência da alta fantasia na cultura pop deu lugar a outros gêneros como o cyberpunk (ou a ficção científica em geral) como tendências do momento.
Apesar disso, muitos autores continuam apostando nas fórmulas comprovadamente eficazes do gênero, que sempre terá o seu nicho de leitores apaixonados, enquanto outros, como Joe Abercrombie e Patrick Rothfuss, desafiam essas convenções de forma ainda inovadora e provocante.
Fato é que, independentemente do seu futuro, a alta fantasia marcou seu lugar na cultura dos séculos XX e XXI, e essa conversa não existiria sem a maravilhosa história que J. R. R. Tolkien apresentou ao mundo mais de oitenta anos atrás.
O HOBBIT | J. R. R. Tolkien
Editora: HarperCollins;
Tradução: Reinaldo José Lopes;
Tamanho: 336 págs.;
Lançamento: Julho, 2019 (atual edição).