Aiho’ ubuni wasu’u – O Lobo Guará e outras histórias do povo Xavante, (Ikorê, 2014), traz narrativas do povo A´uwê uptabi da aldeia Etenhiritipã, organizado pelas pesquisadoras Angela Pappiani e Maíra Lacerda. As pesquisadoras ouviram e traduziram seis narrativas coletadas do povo A’uwe, conhecidos como índios Xavantes, que vivem no estado do Mato Grosso.
As histórias são contadas, traduzidas e ilustradas pelos próprios índios e integram o projeto “Histórias da Tradição”, que resgata a cultura dos povos de Mato Grosso e Tocantins. São dois livros, um do povo Karajá, que se autodenomina Iny, e dos Xavantes. Eles são o “povo verdadeiro”, como explica Angela Pappiani, os que mantém vivo o Espírito da Criação. Muitas histórias se referem ao “tempo do poder”, o tempo mítico da narração tradicional, o tempo de criação de todas as coisas.
Os povos indígenas no Brasil abrangem 900 mil pessoas, de acordo com o Censo de 2010. São 240 etnias, com mais de 200 línguas diferentes. O primeiro contato dos Xavantes com os brancos aconteceu no século 18, quando parte da população sofreu um massacre. Dispersos, migraram para o Mato Grosso e permaneceram praticamente isolados até meados do século 20, quando confrontaram as frentes de ocupação do Centro-Oeste, na década de 1940. Hoje, são mais de 20 mil pessoas em 8 terras indígenas demarcadas do nordeste ao sudeste do Mato Grosso.
O resgate da mitologia dos povos do Cerrado é uma forma de conhecer a diversidade cultural sobre a qual está formada a nação brasileira. Para os índios, recontar as histórias é evocar as forças naturais, “fazer os relâmpagos cortarem o céu, a chuva cair, os ventos soprarem”, segundo Ailton Krenak, compartilhar “a infância da humanidade”. A maior parte das histórias explica como surgiram seus rituais, costumes, ou como aprenderam a usar o fogo.
Na história do Lobo Guará, por exemplo, contada por Roberto Teweware Xavante, uma mulher é seduzida pelo Lobo Guará, um espírito maligno. Depois de viver com ele, foge e volta para sua aldeia. Mas ela ficou maculada e precisa passar por um ritual de purificação.
O resgate da mitologia dos povos do Cerrado é uma forma de conhecer a diversidade cultural sobre a qual está formada a nação brasileira.
“Quando o fogo estava bem forte, a mãe jogou a filha em cima da grande fogueira. Os pais haviam decidido jogar sua filha no fogo, porque não havia nenhuma forma de tirar o fedor do lobo impregnado em seu corpo. Nesse momento, o calor do fogo fez estourar o seio da moça, intumescido de leite. O leite que saiu jorrou longe e molhou o tronco da árvore réwede. O leite penetrou pelo tronco da árvore e formou sua seiva. Até hoje nós usamos a resina de réwede para curar as doenças e preparar adornos e objetos de poder para as cerimônias.” (página 32)
Eurico Upariwê Xavante explica sobre o ritual de iniciação dos adolescentes, picados por marimbondos para provarem força e coragem. Os î’ âma” ai”a’wa são os guardiães, que fiscalizam todas as normas das cerimônias:
“Os î’ âma” ai”a’wa agarraram o menino com força, cobriram-lhe o rosto, a cabeça, amarraram os braços, as pernas. Protegeram as partes sensíveis do corpo com folhas grossas de árvores. Deixaram o menino deitado no chão, bem embaixo da casa de marimbondos, e bateram para que ela caísse. A casa cheia de marimbondos caiu em cima do menino! Ele começou a gritar, gritar mesmo, com a dor de tantas picadas. Ele grita e chorava,chorava… E foi enfraquecendo de tanta dor. De tanto chorar, quase desmaiou.” (Páginas 47 e 48)
A dor e a provação fazem com que os iniciados obtenham poder. No caso da mulher, o poder é de se transformar em gavião e voar. No caso do menino, o de compreender os animais e curar doenças. Na narrativa do roubo do fogo, segredo guardado por uma Onça, Pracé Xavante explica a origem das pinturas cerimoniais e do ritual de carregar tora de buriti:
“Os meninos viram que o fogo ia cair na água e apagar. Buru’õtõre, a andorinha, voou rápido e pegou o fogo ainda no ar… e passou o fogo para Mã, a ema. Os meninos, que iam correndo atrás, pegavam os foguinhos e brasinhas que voavam. Começaram a passar pelo corpo para se enfeitar. E cada um foi se transformando em passarinho. Cada passarinho diferente! Dependendo das cores e dos desenhos que se formavam em azul, amarelo, vermelho, preto, branco, cada passarinho ia surgindo… Transformaram-se em jacu, mutum, tucano…” (Páginas 66 e 67)
Angela Pappiani é diretora do Instituto Cultural Ikore, responsável pelo projeto Histórias da Tradição, apoiado pela Petrobrás Cultural, em sua primeira fase, em 2014, e pelo Rumos Itaú, na segunda fase. O projeto publicou os livros Ynyxiwè que trouxe o sol e outras histórias do povo Karajá, Aihö’ ubuni – O Lobo Guará e outras histórias do povo Xavante e Kuwamutü que criou o mundo e outras histórias do povo Mehinaku. Também é autora de Povo Verdadeiro – os povos indígenas do Brasil.