A escritora japonesa Yoko Ogawa foge de enredos convencionais, românticos. Em O Museu do Silêncio (Estação Liberdade, 2016, tradução de Rita Kohl), ela conta a história do sonho de uma velha ricaça em construir um museu bizarro. A ideia é preservar lembranças de pessoas que morreram no vilarejo em que mora. Para levar tal tarefa adiante, ela contrata um museólogo.
Pouco a pouco o museólogo torna-se cúmplice da velha, sua filha adotiva e do jardineiro que construirá o edifício do museu. Também, gradativamente, o narrador familiariza-se com o mau humor e grosserias da velha e o cotidiano do lugar.
Como em outros museus, o Museu do Silêncio destina-se a abrigar uma coleção de objetos que representa um patrimônio histórico ou cultural de uma época ou civilização. Mas estes objetos não podem ter uma simples conotação afetiva. Têm que representar fundamentalmente a vida das pessoas que morreram.
“— Sempre que alguém da vila morre, recolho um único objeto relacionado àquela pessoa. É uma vila pequena, como você sabe, então não é todo dia que morre alguém. Mas não é fácil reunir esses objetos, algo que descobri na prática.Talvez fosse pesado demais para uma criança de onze anos. Mas, mesmo assim, consegui fazê-lo por muitas décadas. A minha maior dificuldade é porque não me contento com uma recordação qualquer.Nunca me contentei com algo fácil, uma roupa que a pessoa vestiu uma ou duas vezes, uma jóia que viveu fechada no armário, uns óculos feitos três dias antes de morrer. O que eu quero são coisas que guardam, da forma mais vívida e fiel possível, a prova de que aqueles corpos realmente existiram, entende ? Algo sem o que os anos acumulados ao longo da vida desmoronariam desde a base, algo que possa eternamente impedir que a morte seja completa. Não são lembrancinhas sentimentais, não tem anda a ver com isso. É claro que o valor financeiro também está fora de questão.” (página 45)
Entre os objetos coletados, estão, por exemplo, um DIU, que pertenceu a uma prostituta assassinada há cinqüenta anos. Ou a capa de pele de bisão-do-rochedo-branco, que pertenceu a um “monge do silêncio”. O monge do silêncio e o bisão-do-rochedo-branco são referências imaginárias. Como em seu último romance publicado no Brasil, e comentado aqui, nem um personagem é nomeado. Nem o lugar é identificado.
A homenagem a pessoas quaisquer provoca uma reflexão sobre morte e esquecimento, ou morte e silêncio.
À parte o projeto da velha, o vilarejo é sacudido por acontecimentos estranhos. Uma bomba explode, matando o monge do silêncio e ferindo a filha adotiva da velha. E uma série de assassinatos de mulheres guarda relação com a morte da prostituta.
A homenagem a pessoas quaisquer provoca uma reflexão sobre morte e esquecimento, ou morte e silêncio. Os dois únicos objetos afetivos que o museólogo leva para o vilarejo, o livro Diário de Anne Frank, que pertenceu à sua mãe, e um microscópio, herança de seu irmão, tornam-se emblemáticos.
Anne Frank leva a pensar sobre os milhares de mortos na Segunda Guerra. As meninas judias, que como Anne Frank, se esconderam em apartamentos clandestinos para fugir dos nazistas. Mas cujas vidas não ficaram conhecidas, como a autora do diário, e foram esquecidas pela história. Paradoxalmente, os milhares de mortos anônimos em Hiroshima e Nagasaki são lembrados permanentemente como protagonistas da maior catástrofe provocada pelo homem nos tempos modernos.
Já o microscópio evoca olhar para a vida insignificante, olhar que tem paralelismo com o trabalho do escritor. Os personagens da literatura representam vidas quaisquer, que em verdade, somos nós, em dimensão universal. Através da ampliação de vidas minúsculas, percebemos a relação entre todos os seres humanos. Com o microscópio da literatura nos tornamos mais sensíveis à alteridade e ao conceito de universalidade. A morte é a equiparação da humanidade em comum, gênios ou medíocres, famosos ou anônimos, empresários ou trabalhadores.
Yoko Ogawa é uma autora japonesa nascida em 1962. Natural de Okayama, já ganhou praticamente todas as honrarias literárias de seu país natal (prêmios Kaien, Akutagawa, Yomiuri, Izumi Kyoka e Tanizaki), publicando mais de 20 obras de ficção e não ficção. O Nobel Kenzaburo Oe disse que ela “é capaz de dar expressão às maquinações mais sutis da psique humana, em uma prosa que é delicada, mas penetrante”. No Brasil, a autora tem publicado os títulos Hotel Iris (Leya Editora, 2011), O museu do silêncio (Estação Liberdade, 2016) e A fórmula preferida do Professor (Estação Liberdade, 2017).
O MUSEU DO SILÊNCIO | Yoko Ogawa
Editora: Estação Liberdade;
Tradução: Rita Kohl;
Tamanho: 304 págs.;
Lançamento: Outubro, 2016.