Há uma espécie de meme que circula eventualmente nas redes que consiste em levantar uma pergunta: como explicaremos aos nossos netos o que ocorre nos tempos atuais? Dentre os fatos inexplicáveis, certamente estão os episódios que são narrados no livro reportagem O Negócio do Jair – A História Proibida do Clã Bolsonaro, da jornalista Juliana Dal Piva.
A obra (que dá continuidade ao excelente trabalho que já havia sido apresentado pela repórter no podcast A Vida Secreta de Jair, no portal UOL) esmiuça os detalhes do esquema inaugurado pelo então vereador Jair Bolsonaro envolvendo seus filhos e suas mulheres em um negócio criminoso: eles contratavam funcionários com salários altos que tinham que devolver a maior parte desse dinheiro ao gabinete que os contratou. Em linguagem popular, é a chamada “rachadinha”, termo que descreve o uso de funcionários fantasmas para embolsar dinheiro indevido.
Foi este sistema que permitiu o enriquecimento nunca explicado da família Bolsonaro. Conforme já foi denunciado, Jair e os filhos não conseguem esclarecer como compraram 51 imóveis com dinheiro vivo, em uma soma incompatível com suas rendas durante estas três décadas. Mas a grande questão que Juliana Dal Piva tenta explicar, na verdade, é esta: por que os Bolsonaros conseguiram levar este esquema durante todo esse tempo sem que nada ocorresse a eles?
O que O Negócio do Jair revela, com grande quantidade de detalhes, é a trama política, burocrática e criminosa que foi constituída por Bolsonaro, como uma espécie de chefe de uma máfia brasileira, enredando seus familiares, conhecidos, amigos da família, parentes de suas ex-mulheres, policiais, além de vários membros das milícias cariocas.
O Negócio do Jair surpreende sobretudo pela coragem de uma jornalista mulher, que se colocou várias vezes em risco para que esta história pudesse ser contada.
O que fica evidente é que a “genialidade” de Jair Bolsonaro é ter encontrado, ainda nos anos 1990, um nicho ainda pouco explorado que possibilitou que ele não encerrasse sua trajetória profissional quando foi aposentado pelo exército em 1988, depois que foi revelado seu plano de explodir bombas dentro de quartéis.
Ao invés de cair no ostracismo, Jair seguiu uma dica e criou uma carreira prolífica na política, onde também encaixou seus filhos e sua ex-mulher Rogéria. Mas, mais importante que isso, ele conseguiu bolar um esquema em que enriqueceu paulatinamente às custas dos postos de trabalho a que tinha direito como parlamentar. E foi esse dinheiro que, aos poucos, viabilizou que ele construísse uma mitologia bem calculada que o levou à presidência da República.
‘O Negócio do Jair’: o trabalho heroico de uma repórter
Conheci parte da investigação de Juliana Dal Piva por meio do podcast A Vida Secreta de Jair, no qual já chamava a atenção o que creio ser um dos grandes trunfos dessa repórter: trata-se de uma profissional disposta a ir à rua, cavoucar naquilo que muitos querem esconder, e que não arrefece depois de levar não atrás de não.
Todo jovem jornalista aprende, a duras penas, que a parte mais difícil deste trabalho é persistir depois de tomar porta na cara incontáveis vezes. Os verdadeiros repórteres – no sentido de terem o talento nato para atuar na esfera “detetivesca” do jornalismo – são os que permanecem tentando, achando brechas e, por fim, descobrem alguma coisa.
Tal qual o podcast, O Negócio de Jair configura como um importantíssimo serviço tanto para estudantes de Jornalismo quanto para a população em geral ao trazer os meandros da investigação enfrentada por Juliana. Este trabalho envolve várias técnicas de apuração, como a consulta a milhares de documentos e um cultivo permanente de fontes que só falarão após o estabelecimento de uma relação de confiança.
Uma das riquezas do livro está em apresentar este nível de detalhes. Assim, sabemos que uma testemunha chave dos crimes dos Bolsonaros só pode vir à tona por conta de um trabalho de formiguinha feito por Juliana com uma fonte que ela chama de Madalena. Foi ela que trouxe à repórter a pista necessária sobre quais seriam os funcionários fantasmas do gabinete dos quatro Bolsonaros (Jair e seus filhos Carlos, Eduardo e Flávio).
O Negócio do Jair surpreende sobretudo pela coragem de uma jornalista mulher, que se colocou várias vezes em risco para que esta história pudesse ser contada – o que significa, na prática, “mexer” com pessoas certamente perigosas. O modus operandi dos Bolsonaros, aliás, é o que podemos chamar de “envenenamento da fonte”: usam a estratégia de tentar destruir a reputação daqueles que revelam seus crimes (um caso em que isso aconteceu está bem relatado no livro A Máquina do Ódio, de Patrícia Campos Mello) para desestabilizar os que elencam como seus “inimigos”.
Em vários momentos, Juliana Dal Piva acrescenta na obra excertos em que mostra essas ameaças, como quando recebe do advogado Frederick Wassef mensagens agressivas que beiram o cômico – por exemplo, quando pergunta se ela seria uma daquelas “comunistas gaúchas guerreira” (SIC). Obviamente, é apenas um toque de humor involuntário em uma obra que narra eventos que são trágicos – simplesmente pelo fato de que aconteceram.
O que nos leva à pergunta inicial neste texto: por que tudo isto ocorreu neste país sem que o “negócio do Jair” fosse desmontado? As respostas a isso estão no livro. Mas algo é certo: as poucas chances que temos de que crimes deste tipo parem de ocorrer no Brasil passam pelo trabalho de excelência feito por jornalistas como Juliana Dal Piva.
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