Jon Ronson é um jornalista de trajetória bastante peculiar. Sua carreira – composta por diversos livros, documentários, e até a adaptação ao cinema da sua obra Os Homens que Encaravam Cabras – é marcada por um trabalho investigativo, um tanto obsessivo, por temas bastante específicos, tendo como marca autoral o tom do texto bastante participativo, meio “gonzo”, sempre com o toque de um humor refinado, algo autodepreciativo. Em Humilhado, sua mais recente obra, debruçou-se no desvendamento de um fenômeno urgente, que é a potencialização da humilhação pública em tempos de internet.
Mas possivelmente Ronson tenha angariado a maior parte de sua reputação com a obra O Teste do Psicopata, publicada no Brasil em 2014 pela editora BestSeller, que parte, como revela logo no início, de uma espécie de exercício de autoanálise: após estudar vários trabalhos que buscaram métodos para identificação e tratamento de psicopatas, o jornalista começa a se perguntar se ele mesmo não teria algo de estranho na sua personalidade. Afinal, como explica, “pode haver algo bastante psicopático no jornalismo, na psicologia, na arte de identificar a loucura”. Jornalistas, pelo menos em essência, são obcecados por suas investigações, vão a qualquer lugar para desvendar suas curiosidades e tendem a usar meios tortuosos para conseguir o que querem. Teriam os jornalistas, então, tendência à psicopatia?
Jornalistas, pelo menos na essência, são obcecados por suas investigações e vão a qualquer lugar para desvendar suas curiosidades. Seriam os jornalistas, então, psicopatas?
Assim, Jon Ronson mergulha – como sempre faz em seus livros – na fascinante busca por entender, afinal, se as características psicopáticas são assim tão comuns quanto apontam alguns estudos que levanta. Uma das pesquisas afirma que 1% da população tem características ou tendências a ser um psicopata. No mundo corporativo, 4% a 5% dos líderes e gerentes seriam psicopatas – isto porque estas pessoas, sem capacidade de ter empatia com os demais, seriam as mais propensas a serem recompensadas na “cadeia evolutiva” das empresas capitalistas. Uma das entrevistas mais intrigantes do livro é com Al “Motoserra” Dunlap, um alto executivo que se tornou famoso pelo prazer que tinha em demitir os funcionários.
Atrevido, Jon Ronson parece confrontativo nas entrevistas que faz. A muitos entrevistados, pergunta, na cara dura, se eles são psicopatas. Frente à evidente negativa, ele segue com suas perguntas um tanto desconfortáveis – muitas vezes obviamente ouvindo o que não quer, e parecendo algo patético – mas noutras tantas capturando algumas informações interessantes. Ao entrevistar Toto Constant, um ex-comandante haitiano preso nos Estados Unidos, acusado de autorizar a dizimação de populações inteiras no seu país, ouve dele que considera muito importante ser gostado pelos outros, e que faz de tudo para isso sempre aconteça. Ao perguntar se isso, na verdade, não seria um sinal de fraqueza, Ronson escuta a seguinte resposta: “se os outros gostam de nós, podemos manipulá-los para fazer o que quisermos que eles façam”.
Em resumo, O Teste do Psicopata explicita a jornada do jornalista em busca de saciar sua dúvida, e definir, por fim, como identificar um psicopata, algo que pode ser extremamente útil nos dias de hoje – afinal, eles estão por toda parte, são manipuladores, desconectados do sofrimento humano, quase capazes de operar como máquinas. Ele chega então a Bob Hare, um psiquiatra que elaborou o chamado teste do psicopata que intitula o livro. Trata-se de um teste simples, com 40 perguntas, que ajudaria a mapear os ditos cujos entre nós (o próprio jornalista identifica em si mesmo vários sintomas). Qual a utilidade deste teste? Hare responde que é para solucionar as seguintes dúvidas: “por que o mundo é tão injusto? Por que toda essa economia selvagem, essas guerras brutais, essa crueldade corporativa diária? A resposta: os psicopatas (…) Eles são as pedras irregulares jogadas no lago tranquilo”.
A essa altura, Jon Ronson começa a se dar conta que há algo de problemático nesta tabela medidora de psicopatas, e que ela encontra consonância com outras obsessões da cultura. Pensaria, inclusive, que este é um dos grandes trunfos da obra: semelhante ao que ocorre em Humilhado, a narrativa construída por Ronson é titubeante, vai e vem. Ele começa com certezas que vão sendo destruídas ao longo do livro. É um jornalista que apresenta o processo, não apenas o resultado; vai costurando a investigação junto com o leitor.
Assim, Ronson logo constata que, de fato, o interesse de todos pelos psicopatas – a mais fascinante das doenças mentais – reflete a nossa obsessão pela loucura e, consequentemente, pela sanidade. Por que queremos tanto saber quem é louco? A resposta: para sabermos distinguir a loucura certa da errada. Somos todos obcecados pela própria sanidade mental, pelas fórmulas da loucura que merece ser louvada (a esquitice charmosa, a leve falta de adequação social, que torna as pessoas menos chatas, mais divertidas, as Maras Maravilhas da televisão) e a doença, aquilo que não devemos ser.
Com esta descoberta, O Teste do Psicopata atinge seus melhores momentos quando se põe a desvendar de que forma esta indústria da loucura está já intrincada na cultura – seja nos programas estilo reality show de barraco, em que pessoas são convidadas a expor seus problemas, seja na obsessão pelas instituições médicas em rotular diagnósticos de doenças novas, seja nos interesses das indústrias farmacêuticas em medicar estas novas enfermidades com novas drogas.
O livro, por fim, deixa um certo gosto amargo de remédio na boca, justamente por revelar que a nossa noção compartilhada de sanidade mental é bastante frágil, mais tênue do que podemos imaginar à primeira vista. As várias odisseias trilhadas por Jon Ronson rumo a seus entrevistados nos garantem: é bem mais fácil provar ser louco do que tentar provar que se é são; neste mundo um tanto esquizofrênico, a perda da estabilidade mental está mais próxima do que se pensa. Se aceitamos ser prontamente rotulados com diferentes diagnósticos (o bipolar, o que tem déficit de atenção, distimia, etc.) – e, claro, ingerir as drogas para solucionar todas estas disfunções – é porque está mais fácil nos tolerar mediante estes rótulos do que simplesmente sendo quem somos.
Assista à palestra de Jon Ronson no TED Talks: Respostas estranhas a um teste de psicopatia
O TESTE DO PSICOPATA | Jon Ronson
Editora: BestSeller;
Tradução: Bruno Casotti;
Tamanho: 272 págs.;
Lançamento: Fevereiro, 2014.