Entre os jornalistas pioneiros na diluição das fronteiras entre literatura e jornalismo, Tom Wolfe foi aquele que esquematizou e batizou o movimento do New Journalism, chegando a classificá-lo de forma polêmica como a maior inovação literária do século XX.
A obra de Wolfe é marcada por extensa experimentação estilística. Em suas reportagens e primeiros livros de não-ficção criativa, Wolfe introduziu ao jornalismo os mais diversos artifícios e figuras de linguagem até então ausentes do gênero reportagem, como onomatopeias, neologismos, fragmentos de consciência e longos trechos em linguagem extremamente coloquial, reproduzidos ipsis litteris das falas de seus entrevistados.
A pontuação caótica, que mescla hífens, travessão, reticências e pontos de exclamação dá à sua prosa uma velocidade que impulsiona a leitura com aceleração atípica para um texto em que a factualidade do que é relatado – construída por meio de extensas entrevistas, pesquisa documental e imersão in loco – é tão essencial. O estilo de Wolfe atinge maior evidência neste que é possivelmente seu livro-reportagem mais célebre: O Teste do Ácido do Refresco Elétrico (1968).
O berço da contracultura
Mais extenso que outros livros-reportagem do New Journalism à época, O Teste do Ácido do Refresco Elétrico é resultado da viagem empreendida por Wolfe, jornalista itinerante baseado em Nova Iorque, à Califórnia, e tem como foco principal a trajetória de outra figura literária da época, Ken Kesey.
Kesey, autor de Um Estranho no Ninho (1962), que seria posteriormente adaptado ao cinema, foi alavancado aos holofotes da literatura americana como um dos mais promissores jovens romancistas da época. Em 1966, quando Wolfe parte ao seu encontro, Kesey acaba de sair da cadeia em fiança após uma cinematográfica tentativa de fuga ao México.
A história da rápida metamorfose do outrora promissor romancista a líder pseudo-messiânico de uma espécie de seita baseada em experimentações contínuas com LSD e outros alucinógenos e sua consequente queda como figura central da contracultura psicodélica californiana formam o ponto central da narrativa.
Por meio de flashbacks, Wolfe apresenta toda a trajetória de Kesey e de seus companheiros, os Merry Pranksters (grupo de artistas, músicos, escritores e jovens hedonistas), desde os primeiros experimentos médicos que utilizaram o LSD em situações controladas até a explosão da contracultura psicodélica na Costa Oeste dos Estados Unidos.
A obra é fruto de extensa pesquisa de campo realizada por Wolfe e tem como foco temático principal, além da ascensão e queda da terrivelmente carismática figura de Kesey, a análise da própria contracultura psicodélica, bem como as forças socioculturais por trás de seu desenvolvimento.
A coisa não-dita
No cerne de O Teste do Ácido do Refresco Elétrico está a ideia da viagem, do deslocamento físico ou mental para além das fronteiras previamente conhecidas. A primeira é a deslocação do próprio Tom Wolfe, que deixa sua base de operações em Nova Iorque para mergulhar diretamente no coração da Califórnia, em uma São Francisco já tomada pelos adeptos da contracultura psicodélica.
No cerne de O Teste do Ácido do Refresco Elétrico está a ideia da viagem, do deslocamento físico ou mental para além das fronteiras previamente conhecidas.
A jornada central do livro é a trajetória de Kesey, uma personagem fascinante que se transforma profundamente ao longo da narrativa: de caipira a autor celebrado, de líder de um grupo experimental de artistas a guru messiânico da contracultura, de fugitivo procurado pelo FBI na costa mexicana a figura deixada para trás pelo próprio movimento que ajudou a estabelecer.
Ainda, Wolfe relata as longas viagens do ônibus Furthur, em que os Merry Pranksters percorrem boa parte dos EUA, realizando experimentos artísticos e sensoriais diversos com uso recorrente de LSD e outras classes de entorpecentes.
Mas a viagem física a bordo do ônibus é apenas o veículo para a descrição da verdadeira jornada do grupo, que é a progressiva abertura das portas da percepção, experiência que chamam de “a coisa não-dita” –– ou seja, o caráter fundamentalmente indescritível da experiência psicodélica.
Este caleidoscópio de experiências é resumido pelo lema principal dos viajantes, proposto por Kesey: “Ou você está no ônibus, ou você está fora do ônibus”. O lema, repetido ao longo de todo o livro, encapsula perfeitamente a mentalidade quase religiosa das jornadas narradas, a divisão claramente estabelecida entre aqueles que estão e os que não estão unidos na intersubjetividade proporcionada pela experiência psicodélica.
Mesmo que seja impossível descrever a coisa não dita nas páginas de um livro, Wolfe consegue chegar o mais perto possível. Ao término da leitura, resta a sensação de ter viajado a bordo do mesmo ônibus, acompanhado das coloridas personagens que permeiam o livro e munido de informações factuais aprofundadas acerca da contracultura psicodélica e da vida social, cultural e política na Califórnia dos anos 60.
O TESTE DO ÁCIDO DO REFRESCO ELÉTRICO | Tom Wolfe
Editora: Rocco;
Tradução: Rubens Figueiredo;
Tamanho: 440 págs.;
Lançamento: Janeiro, 1993.
VOCÊ CHEGOU ATÉ AQUI, QUE TAL CONSIDERAR SER NOSSO APOIADOR?
Jornalismo de qualidade tem preço, mas não pode ter limitações. Diferente de outros veículos, nosso conteúdo está disponível para leitura gratuita e sem restrições. Fazemos isso porque acreditamos que a informação deva ser livre.
Para continuar a existir, Escotilha precisa do seu incentivo através de nossa campanha de financiamento via assinatura recorrente. Você pode contribuir a partir de R$ 8,00 mensais. Toda contribuição, grande ou pequena, potencializa e ajuda a manter nosso jornalismo.
Se preferir, faça uma contribuição pontual através de nosso PIX: pix@escotilha.com.br. Você pode fazer uma contribuição de qualquer valor – uma forma rápida e simples de demonstrar seu apoio ao nosso trabalho. Impulsione o trabalho de quem impulsiona a cultura. Muito obrigado.