Osonho que Luther King teve em 1963 esmorece um pouco mais a cada dia ante o discurso racista, misógino, xenófobo, fundamentalista religioso e, obviamente, sempre equivocado. Esse cenário, entre a distopia e o surreal, tem reforçado o papel da Arte como arma no combate à ignorância e a alienação.
O romance O Vendido fez de Paul Beatty um dos porta-vozes de uma literatura contra o racismo. Irônico e autodepreciativo, o livro é uma colagem de situações cotidianas vivenciadas nos guetos norte-americanos, nas favelas brasileiras e em qualquer outro reduto negro ao redor do mundo. Com um humor inteligente e fino, Beatty trata da segregação racial na cidade fictícia de Dickens com um apuro social e urgente. Eu, o narrador, foi cobaia em experiências raciais desenvolvidas pelo próprio pai, um cientista social excêntrico.
Se Philip Roth usava a comunidade judaica para expor toda a sociedade, Beatty faz o mesmo com os negros. Ao levar do particular para o todo, O Vendido desfaz as máscaras com urgência na era Trump, como uma revelação dolorosa que tanto tenta-se encobrir com subterfúgios e eufemismo. Não há politicamente correto na forma e no conteúdo: é preciso chocar para se chegar à libertação.
Beatty povoa seu texto com pequenas e grandes violências – por vezes estruturais, psicológicas e físicas – que criam uma narrativa engajada e, ainda assim, pulsante. Quando Eu vai à corte, é sem nunca roubar nada, sonegar impostos ou entrar no cinema sem pagar. A ideia inicial de herói, e sua jornada, percorre os primeiros atos, criando uma relação de empatia, adianta justaposta à paranoia e à inversão de papeis.
‘O Vendido’ é um texto duro, muito mais pela reflexão à qual convida, que pela sua estrutura e estilo.
Não há cinismo em Eu; ao contrário, ele é um sujeito petrificado, primeiramente, pela família e, depois, pelo ambiente. O que leva o protagonista à Suprema Corte é o que, inversamente, poderia levá-lo à morte. O jogo de espelhos criados pelo autor dá ideia da sua maestria na construção de um discurso pleno, ousado e chocante. Por meio de uma névoa final e instigante, o leitor não consegue ficar indiferente.
O Vendido é um texto duro, muito mais pela reflexão à qual convida, que pela sua estrutura e estilo. O humor não é uma estratégia de fuga, mas de imersão. Vencedor do Man Booker Prize de 2016, Paul Beatty faz de cada trecho um fio para puxar uma referência cultural clássica ou pop, desafiando o leitor.
A autenticidade de O Vendido é brutal. Os dispositivos narrativos, as construções do discurso e os arcos dos personagens são avançados – como Will Self em A Guimba, ou Michel Houellebecq em Submissão. É preciso coragem para se embrenhar em uma mata tão densa e, infelizmente, ainda selvagem.
O VENDIDO | Paul Beatty
Editora: Todavia;
Tradução: Rogério Galindo;
Tamanho: 302 págs.;
Lançamento: Julho, 2017.