A primeira frase do livro escrito pelo norte-americano Paul Beatty é essa aqui: “Pode ser difícil de acreditar vindo de um negro, mas eu nunca roubei nada”. Pare, respire, releia. Sentiu o peso disso? E olha que essa é bem levinha perto do que vem pela frente, tipo “por que culpar Mark Twain [por conteúdo racista em seus livros] por você não ter coragem e paciência para explicar a seus netos que a palavra ‘crioulo’ [nigger] existe e que durante a vida superprotegida deles é possível que algum dia sejam chamados de ‘crioulos’ ou, pior ainda, que se dignem a chamar alguém assim. Ninguém vai se referir a eles como ‘pequenos eufemismos negros’, portanto bem-vindo ao léxico americano – crioulo!”
O Vendido, obra vencedora do Man Booker Prize e lançada aqui no Brasil pela editora estreante Todavia, com tradução de Rogério Galindo, é o tipo de leitura brutal que deixa uma terra arrasada atrás de si.[/highlight] Não há espaço para indiferença, pois praticamente todas as páginas do livro colocam o leitor numa situação desconfortável, em que é bastante comum rir muito de alguma coisa e no momento seguinte se sentir meio culpado, afinal você acabou de achar graça de algo terrível. É como se o leitor sorrisse e não percebesse uma baba com tom de bile escorrendo pelo canto de sua boca.
Betty, que participou da Flip este ano, parece bastante interessando em perturbar o leitor, mexer com as suas entranhas para que ele jamais pense que aquilo ali é apenas uma leitura de domingo. É bem difícil conter um sorriso amarelo diante de um trecho como esse: “quando a voz dentro da sua cabeça (aquela que você jura que não é preconceito nem racismo) mandar fechar as janelas e trancar as portas, você sabe que entrou na floresta ou numa área de gangue, e que quando voltar a respirar é porque já saiu”. Sentiu um gosto meio azedo na garganta?
Não há espaço para indiferença, pois praticamente todas as páginas do livro colocam o leitor numa situação desconfortável.
O romance é sobre a história de Eu (isso aí, o cara se chama Eu e há uma boa explicação para isso), um sujeito que cresceu em Dickens, uma espécie de periferia agrária de Los Angeles. Durante toda a juventude, ele serviu de cobaia para seu pai, um sociólogo maluco que fez várias experiências com seu filho para comprovar suas convicções a respeito do racismo nos EUA. O pai também era conhecido como “encantador de crioulos”, devido à sua habilidade em mediar conflitos e evitar suicídios, mas ironicamente acabou sendo morto justamente num conflito com policiais.
A partir desse momento, Eu se aproxima de um famoso morador local, um senhor idoso que havia atuado na versão original de Os Batutinhas (essa experiência na TV é revelada aos poucos e é um dos pontos mais tristes do livro) e que agora quer porque quer ser tornar um escravo voluntário. É isso, trata-se da história de um negro no século XXI, que possui um escravo da terceira idade e que terá que responder na justiça por esse crime.
Fora isso, há toda a questão do desaparecimento de Dickens do mapa da Califórnia, como se as pessoas pobres e suas vidas fossem algum tipo de sujeira varrida para debaixo do tapete. Eu tentará conter o problema com uma tática bem simples: pintando uma linha divisória ao longo de todo o território e segregando os brancos. Sim, a solução que ele encontra é praticar racismo reverso, mas num modo hardcore, em homenagem aos velhos tempos, então crianças brancas serão proibidas de frequentar determinada escola, estabelecimentos comerciais só aceitarão negros, asiáticos e mexicanos, brancos não poderão se sentar junto com os negros dentro dos ônibus e assim por diante.
A partir dessa premissa orwelliana, Paul Beatty descarrega uma metralhadora de críticas e piadas absolutamente corrosivas, como “Esse país, sendo o homossexual enrustido de ensino médio que é, sendo o mulato que passa por branco que é, sendo o neandertal que fica o dia inteiro desfazendo a monocelha que é, precisa que os outros gostem dele. Precisa ficar jogando bolas de beisebol em alguém, precisa dar porrada em gays, espancar negros, invadir, embargar. Qualquer coisa que, como o beisebol, evite que um país que está o tempo todo olhando vaidoso para o espelho realmente olhe para o espelho e lembre onde os corpos estão enterrados” ou ainda quando um dos personagens planeja adaptar clássicos da literatura para uma versão politicamente correta, com títulos que variam entre “Médias Esperanças” e “As Aventuras de Tião Sawer”.
Algo muito interessante é que a metralhadora de Beatty não se limita a estraçalhar apenas o racismo e o americano médio, já que os estilhaços também voam para os lados dos discursos bem-intencionados do pessoal mais engajado, ou mesmo da perspectiva acadêmica fria e cerebral diante do horror. É desta maneira, por exemplo, que o narrador aborda o impacto de questões históricas: “Duvido seriamente que algum ancestral que tenha viajado num navio negreiro, naqueles momentos de ócio entre um estupro e um espancamento, ficasse de pé com as pernas enfiadas até os joelhos nas próprias fezes racionalizando que, no final, gerações de assassinato, dor e sofrimento excruciantes, aflição mental e doenças endêmicas valeriam a pena porque um dia seu tatarararararaneto teria acesso a wi-fi, ainda que o sinal fosse meio lento e intermitente”. Ou ainda sobre as raízes geográficas e culturais: “Se você apontar um donut pra minha cabeça, claro, eu ia preferir estar aqui a estar em qualquer lugar na África, apesar de ter ouvido falar que Joanesburgo não é tão ruim”.
O autor faz um bom uso do recurso retórico da sátira, pois se de início as metáforas se assemelham à estruturação de uma história de ficção científica, com a possibilidade de futuro em que haveria uma inversão ou embaralhamento das perversas estruturas sociais então estabelecidas, por outro lado, ao fincar os pés bem fundo no absurdo da realidade, levando as situações até o seu limite, ele ridiculariza a atualidade e escancara a podridão de suas engrenagens: portanto não é o futuro, é o aqui e agora que fede à carniça.
O Vendido, como deu para perceber, não é um livro muito fácil, pois embora seja extremamente inteligente e divertido, ainda assim (ou justamente por isso) é uma leitura bastante exigente, com uma estrutura narrativa não-linear, repleta de sutilezas e socos na cara, bem como inúmeras referências históricas, de cultura pop, e que, portanto, demanda uma leitura atenta e livre de muitos prejulgamentos. É relativamente simples de entender e achar engraçado, mas um tanto complicado de digerir, feito um stand-up do Louis C.K.
Paul Beatty foi bastante corajoso ao não tentar poupar o leitor do desconforto e das reflexões incômodas (se alguns parágrafos desse livro fossem jogados no Facebook, certamente teríamos a Terceira Guerra Mundial), assim como também não perdeu tempo se explicando, pois obviamente confia na capacidade de raciocínio e no bom-senso de seu leitor.
Não é um exagero afirmar que O Vendido é um dos melhores livros do ano, não só pela relevância e atualidade do tema, mas também pela capacidade técnica de Beatty em desenvolver uma prosa fascinante e atípica, ao mesmo tempo em que nos bota pra pensar sobre o quanto a nossa realidade é desoladora.
O VENDIDO | Paul Beatty
Editora: Todavia;
Tradução: Rogério Galindo;
Tamanho: 302 págs.;
Lançamento: Julho, 2017.