Por décadas, até séculos, diversos escritores foram acusados dos mais diversos crimes contra a moral e a ordem, resultando na proibição das suas obras ou mesmo em ameaças à vida dos próprios autores. Ao longo da história, as artes sempre desempenharam esse papel de suscitar discussões intensas e ações extremas das alas mais reacionárias da sociedade — e a literatura não é exceção.
O caso do exílio do romancista indiano Salman Rushdie é emblemático desse poder divisivo da arte. Após a publicação de um dos seus romances mais conhecidos, Os Versos Satânicos, em 1988, o escritor foi condenado por publicar obra considerada ofensiva à fé islâmica e enfrentou ameaças de morte. Forçado a deixar seu país sob proteção do governo britânico, o autor vive radicado nos Estados Unidos desde 2000.
Em sua escrita, Rushdie mescla os artifícios fantásticos do realismo mágico com a precisão descritiva da ficção histórica, resultando em uma obra que destrincha minuciosamente as relações de poder e opressão que permeiam as dinâmicas entre colônia e metrópole, entre nativos e imigrantes, entre o Ocidente e o Oriente –– análise que Rushdie empreende com tremenda técnica e sensibilidade.
Opostos em confronto
Os Versos Satânicos narra a história de dois protagonistas antagônicos: Gibreel Farishta, célebre estrela de Bollywood, e o soturno ator e dublador Saladin Chamcha. Somos apresentados à dupla em meio ao primeiro episódio fantástico da trama: a queda de ambos dos céus acima de Londres após a explosão do avião em que viajavam da Índia para a capital inglesa.
É apenas mais adiante que descobrimos o contexto por trás do terrível acidente que, milagrosamente, poupa a vida dos protagonistas, que conseguem sobreviver à queda graças à interferência de poderes sobrenaturais. A queda reflete a brutalidade da chegada dos imigrantes ao antigo centro do poder colonial, e é o evento que dará início à lenta metamorfose de ambos.
Como personagens, Gibreel e Chamcha não podiam ser mais diferentes: enquanto o primeiro é uma figura envolta em escândalos e atitudes reprováveis, o segundo é um homem que se leva a sério demais; enquanto Gibreel tece comentários irônicos sobre a colônia, Chamcha defende fervorosamente a honra britânica em detrimento de sua terra natal.
Logo após tombar à terra, Chamcha descobre chifres em sua testa e aos poucos se converte na imagem do próprio Diabo, e passa a ser tratado com asco e repulsa pelas autoridades britânicas que tanto estimava. Gibreel, por sua vez, recebe visões do Arcanjo Gabriel e perde lentamente a sanidade, assombrado por eventos fantásticos da história islâmica (e outros episódios enigmáticos inteiramente inventados por Rushdie).
Os Versos Satânicos é uma narrativa em que mundos contrastantes entram em colisão.
Contudo, as posições das personagens –- o demônio e o messias –– são desafiadas e revertidas diversas vezes ao longo da trama, e à medida que a narrativa avança torna-se cada vez mais claro que os dois são adversários escolhidos por uma força maior para enfrentarem-se em um terrível confronto no clímax da história.
O silenciamento da arte
É justamente nas visões fornecidas pelo espírito do Arcanjo que está a polêmica que resultou na intensa reação por parte da comunidade muçulmana mais conservadora. Os Versos Satânicos do título se referem a um episódio controverso na religião islâmica, visto pelas autoridades muçulmanas como blasfêmia. Segundo a lenda, o profeta Maomé teria sido enganado pelo Diabo, que teria sussurrado versos que acabaram incorporados ao Corão e depois retratados pelo profeta após perceber seu erro.
A inclusão desse evento na narrativa, bem como o título que o evoca, resultou em uma extrema reação negativa por parte das comunidades islâmicas. Em fevereiro de 1989, após uma manifestação violenta contra o livro no Paquistão, o aiatolá Khomeini, então líder supremo do Irã, emitiu uma fatwa (poderoso pronunciamento legal na lei islâmica) pedindo a morte de Rushdie e de seus editores.
Todavia, a intensidade de tais reações extremistas diante de obras de arte polêmicas acaba por prolongar a relevância da obra, cumprindo o propósito contrário dos seus proponentes, que é o de silenciar os questionamentos levantados pela arte. O livro de Rushdie é um grande exemplo disso, pois permanece leitura essencial para todos que se interessam por realismo mágico e questões pós-coloniais.
Os Versos Satânicos é uma narrativa em que mundos contrastantes entram em colisão: os mundos pessoais de Gibreel e Chamcha, a Índia e o Reino Unido, a ex-colônia e a metrópole, os imigrantes e os nativos, fiéis e ateus, e outras dicotomias realçadas pelos elementos fantásticos cuidadosamente introduzidos por Rushdie. Além das intrigantes temáticas tratadas com grande inteligência e profundidade pelo autor, a prosa de Rushdie é rica em experimentação narrativa e metáforas e é a força que arrasta o leitor até a última página.
Seus críticos, portanto, falharam: Rushdie não somente vive, mas viverá para sempre no cânone da literatura contemporânea.
OS VERSOS SATÂNICOS | Salman Rushdie
Editora: Companhia de Bolso;
Tradução: Misael H. Dursan;
Tamanho: 600 págs.;
Lançamento: Agosto, 2008 (atual edição).
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