A Era Collor é, quem sabem, a grande incógnita da história recente do Brasil. Saído de uma ditadura militar, que mitigou e vulgarizou os brasileiros por duas décadas, o país entrou a década de 1990 acreditando em uma renovação não encontraria pé, que não conseguiria se erguer e que desembocaria em uma grande crise política e econômica.
Semelhanças com o nosso presente não são coincidências, mas um projeto de falência. Ainda assim, e oferecendo um material vasto, esse período passa ao largo do nosso cinema e da nossa literatura. Nos livros, a exceção acontece com Solução de dois Estados, romance mais recente de Michel Laub, e Por acaso memória, novela de Carlos Machado publicada em julho.
Machado, cuja obra se propõe a investigar a relação do sujeito com o espaço urbano, explora uma nova camada que, de alguma maneira, sempre esteve latente em seus escritos: a questão de identidade. Se em seu livro anterior, Olhos de sal, o escritor se debruçava sobre um homem em fuga espacial, agora essa fuga se dá na perspectiva do tempo. Olavo, Teresa e Joana – pai, mãe e filha – são o núcleo duro desse breve e contundente enrede que tentam encontrar a si mesmos na vastidão de um país colapsado e perdido.
Olavo é um louco, alguém que escolheu viver sua vida de um modo muito próprio e impossível de ser alcançado pelo outro.
Olavo é como o homem subterrâneo de Dostoievski, alguém que vive à margem porque perdeu a capacidade de escolher outra maneira de se colocar no mundo. Engolido pela rotina e forçado a uma mudança para o sul brasileiro, o protagonista se vê em perpétuo xeque-mate.
Essa é, em certa medida, uma condição perpétua dos personagens de Carlos Machado: está no Pedro, protagonista de Esquina da minha rua, no narrador de Poeira fria, e o no viajante de Balada de uma retina sul-americana, e está também nos muitos joões e marias daltonianos que povoam seus contos. São sempre uma gente em conflito interno, uma batalha que sabem: jamais será vencida.
Joana representa o “vínculo real” de Olavo, o único elo capaz a ligar-lhe à verdade mais imediata. Foucault analisava a loucura como um estado não de alienação, mas de interpretação particular – talvez uma visão muito próxima da representação dessa mesma figura no tarô. Sob esse ponto, Olavo é um louco, alguém que escolheu viver sua vida de um modo muito próprio e impossível de ser alcançado pelo outro.
Collor é o propulsor de tal movimento involuntário e, posteriormente, mecânico e enraizado na natureza do protagonista. Não à toa, Por acaso memória fecha com Olavo transformado física e psicologicamente. Diante da barbárie, sabemos hoje muito bem, é praticamente impossível manter a sanidade e Machado, num excelente jogo de ideia e histórias, delineia muito bem os limites entre a loucura e a lucidez.
POR ACASO MEMÓRIA | Carlos Machado
Editora: Arte & Letra;
Tamanho: 72 págs.;
Lançamento: Julho, 2021.