A pouco mais de 230 km de São Paulo, a cidade de Araraquara, no início da década de 1980, era pequena e provinciana demais para suportar a revolução que Ricardo Correa da Silva e Vagner Munhoz estavam ansiosos em causar.
Extravagantes, ousados e visionários, os dois cabeleireiros passeavam de bicicleta pela cidade maquiados e com o cabelo em cores saturadas como em filme do Almodóvar. Tudo isso muito antes de Boy George ou de Madonna levarem a cultura das boates gays para o mainstream.
Anos mais tarde, Ricardo ficaria conhecido como Fofão da Augusta, um andarilho da região central paulistana, e Vagner se tornaria Vânia, uma prostituta em Paris. Duas vidas que se cruzaram por acaso e provocaram terremotos por onde passaram. No final de 2017, uma reportagem de Chico Felitti para o BuzzFeed sobre a vida de Ricardo se tornava coqueluche e viralizava no Facebook. Em poucos minutos, Ricardo abandonava a sua aura mitológica – e ao mesmo tempo anônima – e ganhava novamente uma identidade. “Fofão da Augusta? Quem me chama assim não me conhece”, anuncia o perfil. E Ricardo tinha razão.
A caixa de e-mails de Felitti começou a pipocar com histórias e depoimentos sobre Ricardo, que morreu dois meses depois de a matéria ser publicada. Havia muito mais o que falar sobre o seu personagem enigmático, que podia ir de uma calorosa conversa em francês a surto de esquizofrenia em minutos. Ricardo e Vânia, publicado pela Todavia, é mais que uma biografia sobre dois anônimos: é um manifesto a todos que, de alguma forma, estão ou são marginalizados.
Percorrendo as ruas de Araraquara, São Paulo e Paris, Felitti, sempre acompanhado da mãe, faz uma via crucis do corpo. Coincidência e muita conversa vão carregando o autor até os rios dessa história de amor, ao melhor modo de Joseph Mitchell, como bem lembrou Michel Laub em um texto para o Valor Econômico.
Ricardo e Vânia é um livro comovente e audacioso, capaz de revelar muito da psique humana sem, necessariamente, querer analisá-la.
Memória
Ricardo e Vânia depende sempre da memória alheia e as informações se cruzam para formar um retrato emocionante de um homem que só foi chamado artista depois de morrer. Antes, estampou o Notícias Populares – aquele mesmo que publicou o nascimento do bebê-diabo – depois de ter um surto e roubar joias de uma casa de penhor na Avenida Paulista.
Felitti resgata mais que uma história embebida em (muito) silicone – que deformaria o rosto do casal e seria a causa do apelido de Ricardo – e (algumas) drogas.
Em certa medida, o livro está dividido em duas partes: uma sobre Ricardo e outra a respeito de Vânia. A primeira vai até a página 103. Dali em diante, é Vânia quem protagoniza a biografia. A fronteira é imaginária, não passa de uma linha tênue a dividir vidas.
Como é na realidade. Felitti conduz o leitor com cuidado em uma viagem à França. É de lá que escrutina as muitas vidas de Vânia – que foi Babette, Vênus, Venúsia, Kara, Hara, mas que, no fundo, queria somente ter o rosto de uma boneca de porcelana chinesa.
Ricardo e Vânia é um livro comovente e audacioso, capaz de revelar muito da psique humana sem, necessariamente, querer analisá-la. O jornalista criou um texto que emociona, mas consegue revelar bom humor e leveza em uma história complexa, imprecisa e impossível de ser completamente decifrada.
Como fez Janet Malcolm no perfil de David Salle, Felitti traça começos e recomeços de vidas que, inventadas ou não, são completamente verdadeiras. Ricardo e Vânia é a ponta de um grande iceberg.
RICARDO E VÂNIA | Chico Felitti
Editora: Todavia;
Tamanho: 192 págs.;
Lançamento: Fevereiro, 2019.
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