Você abre os olhos e não consegue definir se é dia ou noite. O gosto em sua boca faz parecer que você comeu um rato podre e a dor lateja em seu cérebro no sádico ritmo cardíaco, então não demora muito para que você se dê conta de que talvez tenha exagerado um pouco ontem. Ou seria hoje? De repente, um abismo em seu estômago: o jantar no colchão, no tapete, no chinelo. Junto à náusea, um pensamento “como eu cheguei vivo em casa?”. Isso nunca aconteceu com você, mas já aconteceu com o amigo de um vizinho de um conhecido seu, e também com o Hunter S. Thompson. Pra caralho, aliás. Rum: Diário de um Jornalista Bêbado tem um título tão autoexplicativo que fica meio constrangedor apresentar uma sinopse, mas vamos lá, quem sabe a gente consiga desviar da obviedade.
O livro começou a ser escrito quando Thompson (que veio a desenvolver aquilo que conhecemos como Jornalismo Gonzo) tinha apenas 22 anos e estava trabalhando em Porto Rico como jornalista. Trata-se de um romance de ficção, protagonizado por Paul Kemp, um jovem de mesma faixa etária, trabalhando na mesma coisa, no mesmo lugar. Enfim, é meio difícil não encarar tudo isso como uma obra autobiográfica. O romance só foi lançado décadas depois, quando o autor já havia se tornado uma espécie de rock star, então a história funciona praticamente como a gênese da persona vida louca que posteriormente veio a se tornar tão famosa quanto trágica.
Ao desembarcar em terras caribenhas, Paul Kemp se depara com um país politicamente caótico e uma redação cheia de gente maluca. O ambiente é completamente insano, com pessoas sendo espancadas na frente do jornal e com colegas tomando café da manhã à base de rum e hambúrgueres. Entre matérias a serem escritas, prisões e bebedeiras, o autor nos apresenta um retrato contundente da região, tão linda quanto hostil aos olhos estrangeiros.
A história funciona praticamente como a gênese da persona vida louca que posteriormente veio a se tornar tão famosa quanto trágica.
Rum: Diário de um Jornalista Bêbado, publicado pela editora L&PM, é mais do que a ilusão do sonho americano se deteriorando ao sol de terras gringas, pois o que Hunter S. Thompson faz aqui é uma reflexão alcoólica sobre a (falta de sentido da) existência. É um livro que fala sobre chegar por volta dos 30 anos sem saber exatamente quem você é e muito menos que rumo seguir, já que absolutamente tudo ao redor parece estar errado, então a desorientação pós-bebedeira, nesse contexto, pode servir muito mais como uma metáfora sobre a desesperança do que como mera descrição de uma ressaca. Às vezes, há mais do que angústia em nosso peito quando acordamos no dia seguinte com garrafas espalhadas pela casa, certo?
Não que o personagem pare para refletir e cagar lições de moral sobre os estragos dos seus porres homéricos, pois a ideia aqui é emendar uma bebedeira na outra, para que o clima ébrio torne a vida sob tanto calor e insanidade um pouco mais suportável. A regra é tocar o foda-se e ir levando enquanto houver dinheiro para comprar mais rum e cerveja. Parar para pensar seria abrir espaço para que a dor se sentisse confortável e ameaçasse colocar os pés no sofá ali dentro da mente.
O que coloca Hunter S. Thompson anos luz à frente de um escritor como Jack Kerouac, por exemplo (pra ficarmos na prateleira do pessoal que não levou uma vida das mais convencionais), é o fato que ele escreve muito bem. Algumas obras se imortalizam, por representarem um espírito nostálgico de uma época, e só por isso, mas esse não é o caso de Thompson, pois há muita técnica na forma como ele escreve e nada de desleixo. Às vezes a gente esquece, mas não basta ser alfabetizado e bebum para alcançar um nível literário que consiga ser intelectualmente relevante, que possa ser cru e ao mesmo tempo sofisticado, do ponto de vista da linguagem. O jornalista não minimiza a imundície da realidade com palavras bonitas, pelo contrário, ele alcança um lirismo que dá corpo; há um equilíbrio muito interessante entre humor e o desencanto. Tudo isso sem ser melodramático e sem resvalar na filosofia de boteco. Enfim, aqui a forma e conteúdo fluem de maneira harmoniosa e envolvente.
O sentimento que fica após a leitura é que você ainda está naquele quarto escuro e não sabe que horas são, o mundo é um terremoto ameaçando as paredes de seu cérebro. Ao afastar as cortinas, o sol atravessa a janela, os seus olhos, o quarto, o seu espírito. O ontem ficou lá atrás, no conforto escuro do passado; e após a cegueira inicial, é possível enxergar os contornos de um novo dia, tanto faz se no Caribe, nos EUA ou no Brasil, foda-se. O que importa é que isso tudo ainda tem cara de esperança, de purificação, de significado, mas você já passou por coisas demais nessa vida e o único clichê que você ainda acredita é o de que cada dia representa um novo recomeço. Portanto, é hora de seguir em frente e abrir mais uma garrafa.
RUM: DIÁRIO DE UM JORNALISTA BÊBADO | Hunther Thompson
Editora: L±
Tradução: Daniel Pellizzari;
Tamanho: 152 págs.;
Lançamento: Maio, 2011.
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