Por Vitor Ferraz*, especial para Escotilha
Quando lemos um livro dificilmente deixamos de lado a nossa expectativa romantizada dos acontecimentos que perpassam o enredo. Esperamos cenas de amor, aventura, terror e deleite com alto grau de dramaticidade ou lirismo. Bom, mas quem disse que para um livro ser bom ele deve estar repleto de palavras difíceis, complexidades e metáforas?
Graciliano Ramos era um cara que andava na contramão dessa ideia. Escrever, para o escritor alagoano, deveria ser feito da mesma maneira como as lavadeiras de Alagoas fazem seu ofício. Elas lavam, batem, torcem, torcem, torcem e estendem a roupa para secar. A literatura de Graciliano não coloca seu lirismo na complexidade dos termos, mas justamente nos significados que são passados. Por isso, ler São Bernardo é uma experiência diferente da maioria dos livros.
O enredo traz Paulo Honório, um fazendeiro chucro e caboclo que decide escrever um livro sobre sua vida, na tentativa de compreender fatos que lhe fugiram ao controle. São Bernardo é o nome da fazenda de Paulo, menina de seus olhos e o maior objetivo de sua vida. A obra traz um narrador que julga e tenta controlar a todos, tudo ao seu redor deve agir exatamente como ele deseja, senão…. A única coisa que ele não consegue controlar e entender é sua mulher, Madalena. Esse fato acaba sendo a causa da grande angústia da vida de Paulo, levando-o a escrever o tal livro.
A literatura de Graciliano não coloca seu lirismo na complexidade dos termos, mas justamente nos significados que são passados. Por isso, ler São Bernardo é uma experiência diferente da maioria dos livros.
Justamente por ter uma pessoa não iniciada nas letras como narrador, o livro é uma fonte incrível de linguagem objetiva e regional. A primeira frase da narrativa é a seguinte: “Antes de iniciar esse livro, imaginei construí-lo pela divisão do trabalho”. Paulo daria a seus amigos determinadas funções para a construção da narrativa: o padre ficaria encarregado da moral, um advogado da pontuação e sintaxe, e um jornalista com a composição literária. Essa ideia não agrada o fazendeiro, que resolve contar a história do seu jeito.
“As pessoas que me lerem terão, pois, a bondade de traduzir isto em linguagem literária, se quiserem”.
Algumas passagens do livro demonstram exatamente a ideia da narrativa direta. É importante deixarmos claro que a não utilização de linguagem complexa e metafórica não diminuí o valor literário da obra, ela acaba sendo complexa e profunda de outras maneiras que não pela utilização dessas ferramentas. Tomemos como exemplo o momento em que Paulo conta ao seu leitor, pela primeira vez, que sua mulher tinha dado a luz:
“- Maria das Dores, acenda os candeeiros.
O pequeno berrava como bezerro desmamado. Não me contive: voltei e gritei para Dona Glória e Madalena:
– Vão ver aquele infeliz. Isso tem jeito? Aí na prosa, e pode o mundo vir abaixo. A criança esgoelando-se!
Madalena tinha tido menino.”
Toda essa passagem vem logo após um longo capítulo no qual Paulo revela seu descontentamento com as pessoas que viviam em suas terras. A maneira como seu filho é revelado na narrativa não tem nada de pomposo, na verdade é quase animalesco. A comparação da criança com um bezerro reforça essa ideia, não há emoção no nascimento de mais um animal. Após a revelação, o capítulo acaba e o narrador passa a falar sobre outro assunto. Graciliano era muito bom em mostrar o mundo chucro e bárbaro do interiorano.
Outra passagem que revela a mesma ideia refere-se à morte de um funcionário da fazenda.
“Na pedreira perdi um. A alavanca soltou-se da pedra, bateu-lhe no peito, e foi a conta. Deixou viúva e órfãos miúdos. Sumiram-se: um dos meninos caiu no fogo, as lombrigas comeram o segundo, o último teve angina e a mulher enforcou-se.
Para diminuir a mortalidade e aumentar a produção, proibi a aguardente”.
Toda uma família morta, uma verdadeira tragédia que poderia ser contada em um livro inteiro acaba se resumindo em apenas um parágrafo. Para Paulo a produtividade de suas terras estava acima de qualquer história que não lhe diz respeito. A única coisa que importa é o lucro.
Apesar de toda a ignorância e brutalidade, Paulo Honório é um narrador muito interessante. Seu modo de contar sua própria história é acessível, de fácil degustação. Isso não coloca a literatura de Graciliano, de modo algum, em um patamar menos importante. Aliás, devemos parar de colocar autores em pedestais apenas por usarem linguagem mais sofisticada. Afinal, a literatura foi feita apenas para alguns ou para todos?
SÃO BERNARDO | Graciliano Ramos
Editora: Record;
Tamanho: 272 págs.;
Lançamento: Maio, 2003 (94ª edição);
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* Vitor Ferraz é natural de Curitiba. Formado em Jornalismo e Letras Português/Inglês, gosta de escrever sobre literatura brasileira e o jornalismo atual. Publica no Instagram @projetobrainfood sobre diversos temas.