Em 1970, o Brasil vivia o milagre econômico. A economia crescia 10% ao ano, as exportações aumentavam a olhos vistos, o desemprego estava retraído – devido à oferta de empregos na indústria – e o brasileiro começava a ter em casa eletrodomésticos que nos EUA já eram coisa do passado. Naquele mesmo ano, a Seleção conquistava o tricampeonato mundial no México. De volta ao país, os jogadores foram recebidos como heróis e ficou icônica a foto de Pelé, naquela época ídolo máximo do futebol, segurando a Jules Rimet e ao seu lado o presidente Médici, um dos generais que governou durante a ditadura militar.
Médici fazia parte da linha dura. Os anos de 1969 e 1974, quando estava à frente do Planalto, foram alguns dos mais repressivos e perigosos para qualquer um que fosse considerado subversivo. Foi nessa época que Chico Buarque, Toquinho, Caetano Veloso e Gilberto Gil buscaram exílio na Europa. Nesse período também, Geraldo Vandré teria sido torturado pelos militares, fato que ele nega veementemente.
Esse cenário de caos e perseguição é o pano de fundo para Setenta, romance de Henrique Schneider, vencedor do Prêmio Paraná de Literatura de 2017. Publicado quando o AI-5, a medida mais radical de castração da oposição ao regime militar, completa cinco décadas, o livro retrata as semanas de cárcere de Raul, um bancário preso por engano depois de uma tentava frustrada de sequestro do cônsul dos Estados Unidos em Porto Alegre pela Vanguarda Popular Revolucionária (VRP) – grupo que teve a ex-presidente Dilma Rousseff como integrante.
Apesar do peso que carrega, Setenta é um livro sensível e acessível, chocante em suas descrições da tortura, mas também rigoroso na construção narrativa que intercala vozes e não segue uma ordem temporal linear, passeando pelo pesadelo do protagonista, através do desespero da mãe de Raul e do deboche dos soldados encarregados de depoimentos que pouco respeitam os direitos humanos. São olhares que – mesmo sem julgar seus personagens – se misturam e se completam para tentar recriar as duas décadas e meia perdidas de generalato. Essa estratégia é também o que dá certo tom de suspense e apreensão, convidando o leitor para calçar os sapatos de Raul.
Em simultâneo ao terror individual dos presos políticos, o Brasil vive uma efervescência coletiva, uma catarse pela disputa final da Copa com a Itália.
Setenta é construído para ser um relato, um testemunho dos anos de chumbo e um refresco para aqueles que ainda pedem a intervenção das forças armadas.
Cores de Almodóvar
Schneider pinta, com cores de Almodóvar, os dois brasis possíveis. O pão e circo da ditadura militar alimentava e anestesiava o brasileiro médio e conformado – ou que “não quer se meter com esse negócio de política”. A caça aos comunistas corre solta e João Saldanha, técnico que antecedeu Zagallo à frente da Seleção, foi afastado por não convocar os jogadores indicados pessoalmente por Médici. Ninguém queria um comuna campeão do mundo.
Setenta é construído para ser um relato, um testemunho dos anos de chumbo e um refresco para aqueles que ainda pedem a intervenção das forças armadas. O livro retrata tudo o que forma é disforma um país e seu povo. Como fez Bernardo Kucinski em K. e Você vai voltar para mim, o livro de Schneider é o relato de uma busca, uma tragada de esperança em um copo de cólera.
São muitos os mistérios que envolvem o horror e são ainda maiores os dissabores depois que tudo passa. Raul é uma gota no oceano e sabe disso. Por não ser ninguém para os militares e tampouco para todos os que se opõem ao regime, tem consciência de que isso faz dele um sujeito vulnerável cuja vida vale muito menos que o gol de Carlos Alberto, que fechou o placar no Estádio Azteca.
Paralelo
Sem estabelecer paralelo direto com 2019, Schneider acaba por fazer muitos jogos de imagens e representações. É praticamente impossível fugir às comparações, ainda que involuntariamente. “Fico muito assustado quando vejo que uma pessoa que homenageia publicamente o coronel Brilhante Ustra, um torturador que levava os filhos pequenos de presos e presas para assistirem às torturas a que eram submetidos os seus pais e mães seja hoje tratado como mito por pessoas que nasceram após o período da ditadura (ou, ao menos, o período mais duro dela) e que, num desconhecimento preocupante, saíram às ruas para bradar pela volta deste tipo de regime”, comentou o autor em entrevista à Biblioteca Pública do Paraná.
Em Setenta, não há qualquer maniqueísmo ou manipulação. É um registro como tem que ser, com a dureza que precisa ter e com a dimensão histórica que merece.
SETENTA | Henrique Schneider
Editora: Não Editora;
Tamanho: 160 págs.;
Lançamento: Maio, 2019.