Existe uma solidão imensa no peito de quem fez escolhas erradas. Trata-se de um “e se” inchado e infeccionado, que teima em vazar e adoecer a alma em dias de sombras e silêncios. Às vezes a consequência de uma decisão é muito maior do que a perda do tempo que se foi, pois ela é próprio tempo em si, algo imutável, uma mancha tatuada, acessível apenas através das memórias que remoem a dor, mas nem sempre a remodelam e muito menos a curam.
Sobre Meninos e Lobos, publicado pela editora Companhia das Letras, nos apresenta uma perspectiva sombria de um presente composto por escolhas equivocadas e destinos trágicos. Três meninos brincam numa rua no subúrbio de Boston, quando são abordados por dois homens que se dizem policiais. Um dos garotos é coagido a entrar no carro dos desconhecidos, enquanto os outros dois garotos, paralisados de medo, não reagem. O menino fica 4 dias desaparecido até que consegue fugir do cativeiro e voltar para casa sozinho. Décadas depois, a vida destes três personagens volta a se cruzar, pois a filha de um deles está desaparecida.
Se a literatura policial possui algum limite de gênero (o que pode ser uma baita bobagem, vai?), o escritor Dennis Lehane trata de implodi-los, pois seu livro possui uma grandiosidade narrativa que pode ser equiparada a qualquer obra tida como “literatura séria”. Algo fácil de perceber é que Sobre Meninos e Lobos é muito mais do que um mero “quem matou?”. Estamos falando aqui de uma obra que é impactante não apenas pelo mistério de seu enredo e pela tensão envolvendo a investigação, mas também porque é uma história que reflete sobre a condição humana, apresentando-a de uma maneira suja e absolutamente pessimista. As descrições são certeiras, pois aquelas vidas estão sendo demolidas e é apenas quando nossos olhos se acostumam à escuridão do abismo que nós passamos a enxergar as coisas com mais facilidade.
Lehane tem esmero impressionante no uso da linguagem e isso torna o livro um desbunde para quem gosta de literatura bem feita, que vai além do mero entretenimento.
Lehane tem esmero impressionante no uso da linguagem e isso torna o livro um desbunde para quem gosta de literatura bem feita, que vai além do mero entretenimento. As frases que flertam levemente com um lirismo belo e dolorido dão uma dimensão poética à tragédia que se desenrola na nossa frente, mas o mais importante é que o autor consegue esse efeito, sem deixar de lado a objetividade e o ritmo da história.
Falando em história, ela já é bastante conhecida, pois muita gente a viu na telona. Cinema e literatura são linguagens diferentes, a gente perde muito tempo comparando uma coisa e outra pra chegar a lugar nenhum, etc, mas é bastante provável que você tenha vindo parar aqui neste texto justamente por gostar pra caralho do filme, então fica meio difícil não mencioná-lo. O ótimo longa dirigido por Clint Eastwood em 2003 é bastante fiel à obra, chegando mesmo a reproduzir, ipsis litteris, diversas falas do livro, porém a versão cinematográfica deixa de lado uma questão que me parece fundamental: as diferenças sociais. Dennis Lehane impõe mais complexidade à narrativa, a partir do momento em que explora os universos completamente diferentes em que aqueles garotos vivem. Ao apontar os conflitos existentes entre o lado rico e o lado pobre da cidade, o autor apresenta uma dimensão muito maior da violência que nasce na região e possibilita uma percepção mais aprofundada de sua gênese.
Há um aspecto cíclico na questão da selvageria, que parece se sobrepor à noção de vingança. Sobre Meninos e Lobos nos faz pensar que o ódio, impulsionado não só pelo passado, flui de maneira tão natural no sangue de quem sentiu tanta dor, que com o tempo ele passa a compor sua personalidade e a de quem está ao seu redor. Tudo aquilo que deixou de existir, seja o amor de uma filha ou a impossibilidade de um futuro minimamente normal, acaba por preencher o peito de quem se sente insuportavelmente só. A vida seria, portanto, um esforço contínuo em não deixar essa escuridão instintiva e esses demônios interiores escaparem para o mundo, para além da memória de modo a contaminar o presente com sangue. E então, em meio a essa luta, diria Drummond “E como eu palmilhasse vagamente / uma estrada de Minas, pedregosa, / e no fecho da tarde um sino rouco / se misturasse ao som de meus sapatos / que era pausado e seco; e aves pairassem / no céu de chumbo, e suas formas pretas / lentamente se fossem diluindo / na escuridão maior, vinda dos montes / e de meu próprio ser desenganado, / a máquina do mundo se abriu”.
SOBRE MENINOS E LOBOS | Dennis Lehane
Editora: Companhia dos Livros;
Tradução: Luciano Vieira Machado;
Tamanho: 488 págs.;
Lançamento: Novembro, 2002.