No Afeganistão, em meio à guerra sem data, sem início e sem fim, uma mulher num casebre meio desmoronado cuida do marido, que está em coma causado por ferimento à bala. Entre os tiros que rasgam a noite e visitas de milícias fortemente armadas, a afegã cruza o limite da sanidade que a situação extrema lhe traz, sem ajuda de ninguém, sem perspectiva de melhora, apenas Alá e o marido comatoso servindo de âncoras para a cruel realidade.
Este é o ponto de partida de um livro sensível e violento, divertido e angustiante, dolorido e raivoso.
Syngué sabour – Pedra-de-paciência, de Atiq Rahimi, traduzido por Flávia Nascimento, conta a história de uma afegã à beira da loucura: filhos gritando e pedindo comida, um marido quase morto, mas ainda respirando, a solidão que se abate cruel, pois o bairro onde vive é ruína e cheiro de pólvora. Os dilemas tão crus e reais jogam o leitor numa espiral de agonia, mergulham quem acompanha essa história numa experiência que poderíamos chamar de “anticatártica” e, ao mesmo tempo, enriquecedora.
A mulher providencia um colchão vermelho surrado para o marido, um cateter e uma bolsa de soro de onde escorre um líquido incolor até o comatoso. Cada gota significa mais um segundo de vida, mas também aumenta a ansiedade da mulher, que tem nesse marido ao mesmo tempo um dono e um algoz, alguém que não lhe fez tanto bem a ponto de querer salvá-lo. No entanto, também vê como sua obrigação mantê-lo vivo.
O tempo é medido pelos disparos, pelas gotas do soro, pelas páginas folheadas do Alcorão.
Acompanhamos as palavras dessa mulher sem nome, suas aventuras e tristeza, entre risos e lágrimas contidas, com um sofrimento tão profundo que é difícil prosseguir.
E assim ela mantém uma rotina de cuidados com os filhos, com o marido e com a própria vida, o tempo todo à beira de um colapso, entre leituras do Alcorão e choros desesperados. E um desabafo. Uma longa confissão. Para tanto, ela precisa de uma syngué sabour, a proverbial pedra-de-paciência, “para todos os infelizes desse mundo. (…) Conte a ela seus segredos até que a pedra estoure… até que você seja libertada de todos os tormentos”. Acompanhamos as palavras dessa mulher, suas aventuras e tristezas, entre risos e lágrimas contidas, com um sofrimento tão profundo que é difícil prosseguir.
Mas aí está a magia da literatura: não conseguimos largar o livro, queremos saber qual será o próximo passo, se o marido vai acordar de seu coma, qual será a próxima insanidade da mulher, o que o destino reserva a essa família.
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O autor afegão explicou ao Le Monde porque escrever em francês lhe deu uma liberdade para contar as histórias de seu povo com mais liberdade: “para mim, minha língua materna, o persa, é a língua com a qual conheci o mundo, conheci meus tabus, minhas proibições, meus limites. (…) Ao passo que com relação a minha língua de adoção (…) não há essa autocensura”.
Vencedor do prêmio Goncourt de 2008, o livro deu origem a um dos filmes mais fiéis à obra literária a que já assisti, mas tem um motivo: o próprio Rahimi é roteirista e diretor. O filme homônimo passou rapidamente pelas salas de cinema brasileiras em seu lançamento, em 2013. Vale a pena conferir os dois, pois são quase obras complementares: o escrito dá corpo às imagens, e as imagens dão outras cores à história.
SYNGUÉ SABOUR – PEDRA-DE-PACIÊNCIA | Atiq Rahimi
Editora: Estação Liberdade;
Tradução: Flávia Nascimento;
Tamanho: 152 págs.;
Lançamento: Junho, 2009.
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