A primeira grande obra do irlandês Samuel Beckett (1906 – 1989) foi a sua própria vida. Nascido em uma Sexta-feira Santa e morto às vésperas do Natal, é impossível não imaginá-lo como um de seus próprios personagens: figuras claudicantes, de ambientes estranhos, geralmente, nos quais jamais se pensou que houvesse vida. Sua ida para a França dominada pelos nazistas (“Prefiro Paris em guerra à Irlanda em paz”, disse) é uma espécie de alegoria real aos seus Textos para Nada (Cosac Naify), em que o protagonista – uma massa indistinta – habita um local cheio de pedra e lodo. E lá, à sua maneira, é (in)feliz.
A narrativa é direta: mostra o personagem – que bem pode ser um homem, mas também uma bactéria – se movimentando naquele espaço, um espaço cênico vazio, composto pelo mínimo de elementos – como se qualquer adição fosse supérflua. Beckett é amante dos seres primitivos, disformes e incompletos.
Em Esperando Godot (1952) todos os personagens são ignorantes de tudo, inclusive de si mesmos. Godot, que por sinal nunca aparece, é o único sujeito com algum colhão na peça. Na montagem de Fim de Partida (1957) o casal dentro de latas de lixo representa a miséria mais bárbara e inconsciente. Murphy, do romance homônimo de 1938, é o típico vagabundo beckettiano, aquele que se refugia no sanatório para fugir de sua loucura e preguiça.
Textos para Nada, já escrito em francês, adquire aquilo que o autor tanto desejava: a ausência de estilo. Após o período em que perseguiu James Joyce (1882 – 1941), estilisticamente falando, Beckett, que teve um breve romance com a filha do autor de Ulysses (1922), optou pela voz neutra, direita. Para ele, a única forma de se alcançar esse ideal era escrevendo em francês. Ainda que Kafka (1883 – 1924) tenha feito o mesmo ao abandonar o tcheco e optar pelo alemão.
Beckett pontua o absurdo, inverte os valores, onde o que é útil passa a ser desnecessário; e o inútil se torna imprescindível.
Outra coisa: Textos para Nada faz parte de dois momentos importantes na vida de Beckett, por sinal, momentos circunscritos. O primeiro se refere aos anos de frenesi criativo do escritor, que duraram de 1946 até 1955. Depois, o livro pode ser visto como um epílogo para a famosa trilogia beckettiana formada por Molloy (1951), Malone Morre (1951) e O Inominável (1952). Aos interessados, no Brasil os três livros ganharam uma edição recente da Biblioteca Azul.
Poeta da destruição
Não existe salvação em Beckett: todos estão condenados à danação. O personagem de Textos para Nada não está em melhor situação. Sua condição amorfa não lhe oferece qualquer prerrogativa e ele sabe disso. “Desistir, mas já se desistiu de tudo, nada é recente, não sou recente”, reflete na abertura do décimo fragmento.
Beckett pontua o absurdo, inverte os valores, onde o que é útil passa a ser desnecessário; e o inútil se torna imprescindível. E, muito antes de Foucault (1926 – 1984) e seus panótipos, as crias do irlandês já eram vigiadas pelo invisível, um demiurgo mesquinho e sádico – que se compraz com a mutilação e inanição dos seus.
As 13 partes são os pensamentos daquele ser. Cada parte é forjada a um único parágrafo em que tudo se desenvolve. Ao mesmo tempo que tudo ali existe, o personagem vive no vazio, na memória – como Furnes, memorioso personagem de Borges (1899 – 1986), que dividiu com Beckett o prêmio Formentor em 1961.
TEXTOS PARA NADA | Samuel Beckett
Editora: Cosac & Naify;
Tradução: Eloisa Araújo Ribeiro;
Tamanho: 78 págs.;
Lançamento: Abril, 2015.