Todos os anos quando do anúncio do Nobel de Literatura não são poucas as lamentações por não termos um brasileiro entre os favoritos e, se tivéssemos, dizem alguns, só um nome faria sentido: Ferreira Gullar. O poeta maranhense é um dos mais importantes de nossa fauna e flora literária e seu “Poema sujo”, que acaba de completar 40 anos, está entre nós para tirar a prova dos nove. Vinícius de Moraes (1913 – 1980), que considerava “Poema sujo” como a obra poética mais importante escrita até então, deu ao poeta a sua bênção e o seu saravá.
O relançamento de Toda Poesia (José Olympio) que, como sugere o título, reúne sua obra em verso completa, coloca o autor, que publicou seu último livro em 2010, Em Alguma parte alguma, novamente sob os holofotes – não que tenha sido esquecido, mas Gullar não anda recebendo a atenção que lhe devida. Dentre os poetas vivos, Gullar talvez rivalize em importância somente com Augusto de Campos, por sinal, seu desafeto do peito.
A poesia de Gullar é um reflexo do seu engajamento social e político, uma crônica sensível do cotidiano. Militante do Partido Comunista Brasileiro, o poeta precisou se exilar na Argentina, no Chile e também na União Soviética para fugir dos anos de chumbo, retornando apenas anos mais tarde. A experiência de Gullar como exilado foi a base de sua obra mais intensa durante as décadas de 1960 e 1970, quando escreveu “Meu povo, meu poema” e “Poema brasileiro”, ambos de Dentro da noite veloz (1975).
Nesse momento, Gullar já havia rompido com a santíssima trindade da poesia concreta, Augusto e Haroldo de Campos (1929 – 2003) e Décio Pignatari (1927 – 2012), e se estabelecido como um artista multiplataformas, explorando também as artes plásticas. Muito mais preocupado com o conteúdo que com a forma, o maranhense cada vez mais se inseriu em um contexto político único e pouco explorado em nossa poesia.
A atualidade da obra de Gullar vem de seu espanto com o mundo, um eufemismo para uma forma muito pessoal de observar e registrar o que acontece.
Isso explica o seu rigor com a palavra, quase como uma obsessão. As duas últimas estrofes do poema “Traduzir-se”, do livro Na Vertigem do dia (1980) dão a chave dessa relação: “Uma parte de mim/é só vertigem;/outra parte,/linguagem.//Traduzir uma parte/na outra parte/– que é uma questão/de vida ou morte –/será arte?”.
Espanto
“Não há vagas”, poema dos anos 1960, mostra a cruel atualidade de Ferreira Gullar. “O preço do feijão/não cabe no poema. O preço/do arroz/não cabe no poema./Não cabem no poema o gás/a luz o telefone/a sonegação/do leite/da carne/do açúcar/do pão”, diz a primeira estrofe. O caos brasileiro pré-golpe militar e a bagunça pós-redemocratização continuam estampados em uma simetria atroz, capaz de provar que o Brasil não mudou muito de lá para cá. O poema, ao lado da música “Que País é Este”, composta por Renato Russo (1960 – 1996) em 1978, continua de maneira assustadora fazendo todo o sentido.
A atualidade da obra de Gullar vem de seu espanto com o mundo, um eufemismo para uma forma muito pessoal de observar e registrar o que acontece. Certa vez, ainda no início de sua carreira, o poeta foi perguntado sobre a inspiração para o que escrevia. Ferreira Gullar descartou o óbvio e disse ao jornalista que só podia ser poeta porque se sentia espantado com aquilo que o cercava.
TODA POESIA | Ferreira Gullar
Editora: Companhia das Letras;
Tamanho: 536 págs.;
Lançamento: Julho, 2021 (atual edição).