Para que serve, afinal, o jornalismo? São diversas as funções deste ofício, é claro. Mas a leitura do livro reportagem Todo o dia a mesma noite – a história não contada da boate Kiss, da premiada jornalista Daniela Arbex, traz em mente uma resposta possível: o jornalismo, quando bem feito, nos tira do isolamento e nos “funde” à vivência dos outros. Faz-nos sentir – ao menos um pouco – aquilo que sentiu os que tiveram as experiências mais extremas, as alegrias mais inimagináveis e os sofrimentos mais insuportáveis.
Na história recente do Brasil, talvez não haja tragédia mais recontada nas mídias do que a ocorrida no dia 27 de janeiro de 2013, em Santa Maria (RS). Foi nesta data em que o segundo pior incêndio do país (o maior ocorreu em 1961 em um circo de Niterói) vitimou 242 pessoas (em sua maioria, jovens universitários) dentro da hoje conhecida mundialmente boate Kiss.
Uma tragédia gerada por uma série de irresponsabilidades, causando a sensação amarga de que poderia ter sido evitada, uma vez que a maior parte das vítimas não morreu por causa das queimaduras, mas pelo fato de que um material barato foi usado para revestir a boate que, ao pegar fogo, liberou um gás tóxico que envenenou os presentes.
No entanto, ter ciência de tudo isso não é, de fato, nem chegar perto do que sentiu os que estiveram lá, os que participaram do serviço de socorro às vítimas ou os que perderam inexplicavelmente seus entes queridos – especialmente seus filhos, invertendo uma espécie de lógica natural da vida. E aí está, com muito clareza, o propósito da obra de Daniela Arbex: ela visa, sobretudo, nos aproximar de todas essas pessoas que passaram (e ainda passam) pela tragédia da Kiss.
Ou seja, após a leitura do livro reportagem, fica bastante claro que Daniela não estava interessada em investigar os processos criminosos que envolveram o incêndio (embora esta abordagem também esteja lá, mas ela não é o centro da narrativa), e sim nos levar à parte mais dura, a dor indizível dos que enfrentaram tantas perdas violentas.
Em suma, não há nada de muito prazeroso na leitura de Todo dia a mesma noite, e é possível que o leitor atravesse este livro com lágrimas nos olhos durante boa parte do tempo. Você pode não ter filhos, não saber nada sobre Santa Maria, nem jamais ter imaginado qual a sensação enfrentada por milhares de pessoas nesse dia (se contarmos o número de mortos, de sobreviventes, de familiares, de profissionais da saúde); no entanto, é bem improvável que passe impune a este livro.
Com ritmo tenso, a obra nos carrega para o dia 27 de janeiro sob a ótica, principalmente, dos pais que procuram seus filhos que, por razões diversas, resolveram ir para a balada naquele dia.
Com ritmo tenso, a obra nos carrega para o dia 27 de janeiro sob a ótica, principalmente, dos pais que procuram seus filhos que, por razões diversas, resolveram ir para a balada naquele dia.
O recurso narrativo é arrojado: nós sabemos que esta é uma história trágica, mas, ainda assim, Daniela Arbex a constrói em tempo presente, como se estivéssemos ao lado daqueles pais quando eles recebem a ligação que mudaria suas vidas: a de que a boate em que seus filhos provavelmente estavam pegou fogo e é preciso procurá-los pela cidade.
São linhas que descrevem a mais insuportável das angústias: sem saber o que fazer, os pais partem por uma jornada por hospitais, em infindáveis ligações telefônicas e buscas de carros nos arredores da Kiss, na expectativa de não encontrá-los e que eles tenham ido para outro lugar.
A qualidade da apuração feita por Daniela nos faz, inclusive, adentrar nos pensamentos de seus entrevistados. É assim que temos contato com os tormentos de um pai que se culpa por ter melhorado rapidamente de um AVC (pois se sua recuperação tivesse sido mais lenta, talvez o filho não tivesse viajado para Santa Maria nem estado na boate Kiss), ou do casal que percorre a estrada atrás das filhas e faz um pacto de se matarem caso elas tenham morrido no incêndio.
Mas talvez as cenas mais impactantes sejam as que descrevem o Centro Municipal de Desportos Miguel Sevi Viero, vulgo Farrezão, ginásio para o qual foram levados os mortos para a organização de um velório coletivo, uma vez que as funerárias da cidade não comportavam os trâmites para lidar com tantos corpos.
Em suma, Daniela Arbex atravessa com maestria o desafio que o livro apresentava: o de fazer uma obra com novidades em relação a esse fato tantas vezes abordado pelo jornalismo. E é aí que aparece o trunfo do formato do livro reportagem e das técnicas empregadas de jornalismo literário que, como já dito, possibilitam que nos sintamos na pele de quem passou por tudo isso.
O processo de investigação é exaustivo e aborda todas as nuances imagináveis sobre o fato: ela entrevista sobreviventes, pais, médicos que participaram da emergência (o livro abre, inclusive, com a ligação ao médico do SAMU que recebe um chamado inacreditável durante a madrugada). Conversa com advogados envolvidos, e consegue falar mesmo com o prefeito de Santa Maria na época, Cezar Schirmer (que teve sua atuação no episódio duramente criticada).
Aborda, corajosamente, uma questão bastante delicada para a cidade: uma espécie de desconforto que se criou entre parte da população de Santa Maria e os pais das vítimas, que são acusados de se recusarem a superar seu luto e perpetuar um clima modorrento e lúgubre ao local, o que prejudicaria a cidade inclusive economicamente.
Um trabalho árduo e que consegue cumprir seu objetivo de manter viva a memória dessa história e de suas incontáveis vítimas. Há apenas algumas fragilidades na obra que poderiam ser pontuadas: alguns erros de apuração relativos a questões do RS (como citar que a cidade de Capão da Canoa, uma praia gaúcha, fica dentro de Balneário Camboriú, em Santa Catarina), e um preciosismo estranho no uso da fala oral dos gaúchos, colocando as falas de todas as fontes por “tu”, como falam os locais, mas conjugando perfeitamente o verbo na segunda pessoa, algo que raramente acontece (para ilustrar: os gaúchos costumam falar “tu vai” e não “tu vais”, por exemplo).
Por fim, uma crítica que talvez gere alguma polêmica: como se trata de um livro que reconta a história de jovens mortos em uma situação absolutamente injusta, há algo de idealizado no retrato que se faz deles. Uma vez que as principais fontes são seus pais, esta é uma questão algo incontornável, obviamente, mas que gera algum desconforto na composição destes personagens, apresentados como pessoas impecáveis, esforçadas, voluntariosas, bem-humoradas e sempre amorosas com seus pais. Não havia outra saída para a narrativa, no entanto, do que pintar estas pessoas pelas “tintas” empregadas pelos parentes que os perderam tão precocemente.
Em resumo, Todo dia a mesma noite é uma obra forte, imperdível e que vale a pena ser encarada, ainda que seja preciso alertar: leia apenas se estiver em condições emocionais para tal.
TODO DIA A MESMA NOITE | Daniela Arbex
Editora: Intrínseca;
Tamanho: 248 págs.;
Lançamento: Janeiro, 2018.
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