Christopher Hitchens (1949 – 2011), ao lado de Richard Dawkins, foi um dos maiores detratores das movimentações religiosas no decorrer da história. Seu livro Deus não é grande: como a religião envenena tudo foi, ao mesmo tempo, uma coqueluche e uma polêmica infindável. Não é de espantar que, quando descobriu que estava com câncer terminal – no exato momento em que seu livro de memórias Hitch-22 se tornava best-seller –, várias congregações ao redor do mundo fizessem orações para que o polemista morresse rápida e dolorosamente.
Em Últimas palavras, reunião póstuma dos pensamentos de Hitchens acerca da sua doença, registra a sobriedade de um homem à beira da morte. Discutindo com elegância, e um certo tom de ironia que lhe era característicos, o escritor rompe com a ideia do câncer como um fim perpétuo, mas o analisa a partir da perspectiva da materialidade descontinuada. Não, obviamente, pela promessa da vida eterna, mas pelo legado que deixou e pela esperança em uma nova geração capaz de aprofundar a cisão com o dogmatismo. Como se vê pelos últimos anos, Hitchens, infelizmente, estava errado e o fundamentalismo ganhou força e poder ao redor do globo.
Ao contrapor as razões que levam uma pessoa a cair nas ciladas de uma religião conversadora e escravizadora, Últimas palavras evidencia o preconceito e o medo diante do “grande C.”, como afirma o polemista parafraseando Saul Bellow (1915 – 2005). Para Hitchens, a batalha contra a doença não pode ser cética ou esotérica, o único recurso que conta é a ciência. “Se você quiser tomar parte da ‘guerra’ ao câncer e a outras doenças terríveis, então junte-se à batalha contra a estupidez letal”, relata.
Enquanto descreve o seu declínio físico e psicológico – das dores constantes à impotência sexual (em uma das melhores metáforas já escritas sobre o tema) –, Hitchens escrutina a sua doutrina particular. “O medo leva à superstição”, disse em um dos fragmentos soltos do livro, e que revela o estágio final da doença, quando os pensamentos lhe viam soltos e não tinha forças para alimentá-los para além de uma frase. Ainda assim, uma simples sentença se torna um manifesto de sobrevivência, não como negação da morte, mas como declaração contra a imbecilidade de esperar a eternidade.
Sua morte, prematura aos 62 anos, fez dele um dos pensadores mais originais e necessários nos nossos tempos.
Ascensão e queda
Em O Avesso da vida, Philip Roth (1933 – 2018) faz seu alter ego, Nathan Zuckerman, passar por um dos momentos mais pungentes da sua estoica existência: a morte do irmão Henry, um sujeito certinho, que levava uma vida, relativamente, regrada. A morte chega para o Zuckerman bem-comportado repentinamente, sem aviso, durante uma cirurgia de coração.
Com Hitchens, foi parecido. O diagnóstico foi recebido quando a sua carreira estava no zênite e ganhava algum dinheiro com seus livros e palestras.
“Meu livro entrou na lista dos mais vendidos no dia em que recebi o pior dos boletins noticiosos, e por acaso o último voo que fiz como pessoa presumivelmente saudável (para encontrar uma bela e grande plateia na Feira de Livros de Chicago) foi aquele que me tornou dono de um milhão de milhas da United Airlines, podendo desfrutar de upgrades gratuitos pelo resto da existência. Mas ironia é o meu negócio (…).”
Seria o câncer no esôfago a vingança divina pelas blasfêmias que disse? A conjectura de muitos religiosos para a doença é uma grande furada. Antes de ser um orador, Hitchens foi um brilhante escritor. Nessa lógica, a ira deveria ter lhe arrancado os dedos. Por isso, não deixa de soar como um elogio que a ascensão e a queda de Christopher Hitchens são dois lados da mesma moeda. Como poucos, viveu suas ideias e professou a sua falta de fé até o último instante. Sua morte, prematura aos 62 anos, fez dele um dos pensadores mais originais e necessários nos nossos tempos.
ÚLTIMAS PALAVRAS | Christopher Hitchens
Editora: Globo Livros;
Tradução: Alexandre Martins;
Tamanho: 96 págs.;
Lançamento: Setembro, 2012.