A literatura mundial guarda um espaço peculiar para Kurt Vonnegut, o escritor estadunidense que sobreviveu à Segunda Guerra Mundial e retornou como um profeta do apocalipse. O fim do mundo, segundo a sua visão, teria iniciado logo após a expulsão de Adão e Eva do Jardim do Éden e, desde então, a maionese começou a desandar. Por culpa inteiramente nossa, é claro.
Publicada em 2005, a coletânea de ensaios Um Homem Sem Pátria (editora Record, 2006, tradução de Roberto Muggiati) é uma ótima apresentação ao seu pensamento sobre a vida na Terra, que pode ser descrito como uma negatividade que se expressava de forma cômica. Curiosamente, foi planejado e de fato tornou-se a última obra de Vonnegut – ele faleceu em abril de 2007, aos 85 anos.
O subtítulo do livro nos Estados Unidos entrega bem a pegada do livro: “Memórias da Vida na América de George W. Bush”. O escritor – que testemunhou tragédias gigantescas, como o fato de ser um dos americanos presos que sobreviveram ao bombardeio que destruiu a cidade de Dresden, na Alemanha, em 1945, e teve que recolher corpos de milhares de mortos – está estupefato diante do que o seu país vivencia.
Ainda que o cinismo seja uma das marcas registradas de Kurt Vonnegut, não podemos esquecer que ele orgulhosamente se declarava um ludista e um humanista.
Sob o comando de George W. Bush, a quem descreve como uma criança, os Estados Unidos estão à caça de Saddam Hussein, se tornaram uma nação que odeia árabes e se orgulham da destruição do mundo travestida do progresso. Ele escreve: “a evolução pode ir para o inferno, no que me toca. Que erro nós somos. Ferimos mortalmente este doce planeta (…) com um século de orgia dos transportes. Nosso governo está em guerra contra as drogas, não é? Por que não investe contra o petróleo? Não existe um barato mais destrutivo!”.
O tal american way of life se transmutou em um grande bacanal em que o prazer está em “colocar um pouco dessa droga no seu carro e pode correr a mais de cem por hora, atropelar o cachorro do vizinho e estraçalhar toda a atmosfera”.
Mas aqui, tal como no resto da obra de Kurt Vonnegut, a tragédia está sempre misturada à comédia. É claro que ele acaba fazendo uso de seu livro de memórias para oferecer aos seus fiéis leitores suas considerações perspicazes sobre vários assuntos. Entre eles, estão as relações humanas, a tecnologia, a literatura como tudo todo e a sua própria obra, que se tornou cult ao longo de muitas décadas.
‘Um Homem Sem Pátria’ e suas percepções sobre a escrita

Algumas das melhores pérolas de Um Homem Sem Pátria estão nas lembranças que Vonnegut coleta sobre o seu processo de escrita e nas suas percepções sobre o universo literário. Sua inserção neste meio foi algo tortuosa, e levou algum tempo até que ele se estabelecesse dentro do ramo. Mas seu background, o que inclui uma formação em química, causou profunda influência na obra que legaria ao mundo.
“Os críticos julgam que não se pode ser um artista sério e ter também uma educação técnica, coisa que eu tinha”. Vonnegut aponta que os departamentos de literatura das universidades têm verdadeiro horror às áreas das ciências exatas e naturais. Por conta desse olhar híbrido entre a arte e as ciências “duras”, ele conta, acabou sendo enquadrado como escritor de ficção científica – uma forma, segundo diz, de não levá-lo muito a sério. “Muito pouca gratidão me foi demonstrada por isso”, ele escreve, com seu humor característico.
Tudo isso é um grande problema, pois acabou fazendo com que a maior parte dos escritores contemporâneos ignorasse o elemento determinante dos rumos da humanidade: o uso da tecnologia. “Acho que os romances que omitem a tecnologia distorcem a vida tanto quanto os vitorianos distorciam a vida omitindo o sexo”, escreve. E, de fato, as grandes obras de Kurt Vonnegut – como Cama de Gato e Matadouro Cinco – são questionamentos sobre como as evoluções técnicas foram desenvolvidas sem uma reflexão séria sobre os seus efeitos.

Tendo isto em mente, não seria por acaso que os Estados Unidos estariam sempre elegendo as piores pessoas para governá-los (ele debocha: “há uma falha trágica em nossa preciosa Constituição, e não sei o que pode ser feito para consertá-la. É isso: só malucos querem ser presidente”). Trata-se do país do recalque, que acha que todo mundo o olha com inveja, mas que não consegue enxergar os seus incontáveis problemas, como a ausência de um plano universal de saúde pública.
Ainda que o cinismo seja uma das marcas registradas de Kurt Vonnegut, não podemos esquecer que ele orgulhosamente se declarava um ludista (um sujeito resistente às tecnologias, fadado a se tornar obsoleto) e um humanista, para quem a vida se justificava pelo amor e pela solidariedade ao próximo. Ateu convicto, ele questionava as intenções dos que falavam em nome de Deus. Creditando Shakespeare em O Mercador de Veneza, ele insere no livro a frase: “o diabo pode citar as Escrituras a seu favor”.
Nas suas tantas frases de efeito repetidas pelos seus fãs, há várias que foram registradas justamente neste livro, pelas suas icônicas serigrafias reproduzidas no livro (parceria com o artista visual Joe Petro III). Uma delas testemunha que havia doçura de sobra no coração deste iconoclasta: “estamos na Terra para brincar. Não deixe que ninguém lhe diga o contrário”.
Vonnegut lega, ao fim do livro, conselhos otimistas aos seus leitores. Ele recomenda que, mesmo convivendo com a barbárie, não nos esqueçamos de reconhecer a expressar a alegria presente nos pequenos momentos: “insisto com vocês para por favor notarem quando estiverem felizes, e exclamarem, ou murmurarem ou pensarem a certa altura: ‘se isto não é bacana, então não sei o que é'”. Com esta união peculiar entre pessimismo e amor à humanidade, não é de se estranhar que Kurt Vonnegut siga até hoje como um dos autores mais amados do mundo.
UM HOMEM SEM PÁTRIA | Kurt Vonnegut
Editora: Record;
Tradução: Roberto Muggiati;
Tamanho: 157 págs.;
Lançamento: 2006.
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