Kurt Vonnegut (1922 – 2007) foi uma espécie de guru de toda uma geração antibelicista. Seu livro Matadouro Cinco (1969), inspirado nas suas próprias experiências como prisioneiro dos alemães durante a Segunda Guerra, foi publicado muito próximo ao “verão do amor” e lançou um olhar cínico sobre os conflitos humanos – algo que Robert Altman fez com M.A.S.H., projetando seu nome para o stardom da literatura. Muito menos excêntrico do que se espera de um escritor que fez a cabeça dos hippies, Vonnegut teve uma brevíssima vida acadêmica, foi professor de inglês, empresário, trabalhou como repórter no City News Bureau, em Chicago, e como relações públicas na General Electric.
Dois lançamentos recentes, O que tem de mais lindo no mundo do que isso?, publicado pela Rádio Londres, e As Sereias de Titã, que saiu pela Aleph, resgatam a vida e a obra de uma dos mais importantes autores do século XX. Neste mês, a Intrínseca também publica a obra máxima de Vonnegut em tradução inédita de Daniel Pellizzari.
A relação próxima aos jovens foi o estopim para que recebesse inúmeros convites de palestras e, principalmente, discursos em formaturas – deixando lastro para que David Foster Wallace e Neil Gaiman também se tornassem habitués desses eventos. O que tem de mais lindo no mundo do que isso? compila 15 discursos de Vonnegut escritos entre 1978 e 2004 e proferidos de um canto a outro do país. Longe de serem manuais de conduta para a juventude, os textos são pequenas pílulas de autorreflexão e desconfiança com o mundo. “Nem sei ao certo qual é a minha mensagem como escritor. Mas eu gostaria de contagiar as pessoas com ideias humanas antes que elas conseguissem se defender”, afirmou em 1995.
Quem olha as fotos de Kurt Vonnegut em família logo entende o porquê de tamanha afeição para com aqueles que nem conhece: seus leitores são como filhos que precisa do ombro nos momentos de indecisão juvenil. “Se alguns de vocês aqui ainda não decidiram, eu vou facilitar as coisas”, comentou quase no final da vida a respeito da imposição de decisões aos jovens. O que tem de mais lindo no mundo do que isso? é singelo por despertar a esperança e o sentimento de fraternidade, ambos estilhaçados nas vidraças da pós-verdade.
De um jeito ou de outro, Vonnegut se configura como um escritor cada vez mais essencial e atual.
Atemporal
Quando Vonnegut viveu como inimigo capturado, na cidade de Dresden, a guerra era física, materializada nas trincheiras e nos campos de concentração. A equação da barbárie foi holocausto e a herança de ódio deixada pelo Terceiro Reich. Hoje a batalha – que também é campal – ganha corpo na informação, na manipulação dos dados e na arquitetura da ignorância.
As Sereias de Titã (1959), escrito antes de o fim da segunda grande guerra atingir a maioridade, vasculha a ganância do homem por meio da tecnologia e do acúmulo de recursos. Winston Niles Rumfoord – cujo nome pode ser uma bela jogada com o personagem principal de 1984 e o magnata Henry Ford – é um milionário ambicioso e ousado, que durante uma viagem especial acaba desaparecendo, retornando como holograma a cada dois meses para visitar a esposa e fazer profecias bizarras. E, em uma delas, diz que a semiviúva terá um filho com Malachi Constant, sujeito poderoso do cinema e único convidado a testemunhar a materializado de Rumfoord e seu cão Kazak.
No limite entre a ficção científica e a sátira – ou na mistura de ambos –, As Sereias de Titã trata de questões extremamente contemporâneas: como a noção de livre arbítrio, manipulação por meio do medo e a criação de mitos e heróis. Capítulo a capítulo, Vonnegut carrega o leitor em uma grande torrente de fatos que podem muito bem representar a história humana desde a Criação – ao mesmo tempo em que usa o sentimentalismo para quebrar a frieza das tecnologias que mediam a sociedade. Menos didático que O que tem de mais lindo no mundo do que isso?, As Sereias de Titã é um importante vislumbre sobre a morte do idealismo e a chegada à idade adulta.
De um jeito ou de outro, Vonnegut se configura como um escritor cada vez mais essencial e atual. Com um estilo pessoal e inconfundível, é um autor capaz de ler e interpretar nossos tempos como poucos contemporâneos talvez sejam capazes. Kurt Vonnegut é atemporal.