Após terminar a leitura de Uma vida pequena, precisei esperar algumas semanas para tentar escrever alguma coisa a respeito. É que não é um livro fácil, sabe? Não no sentido de complexidade, mas sim no de estrutura emocional. Ou de desestrutura, no caso. É uma obra que demanda certo distanciamento para poder colocar as ideias em ordem, pois dependendo do seu grau de envolvimento com aqueles personagens, não será estranho se você experimentar uma sensação parecida com o luto ao término da leitura.
Esse envolvimento tão intenso com algo fictício só é possível porque a escritora americana Hanya Yanagihara tem uma capacidade impressionante de construir personagens tridimensionais e desenvolver condições psicológicas absolutamente devastadoras.
A obra lançada este ano pela editora Record, com tradução de Roberto Muggiati, é um tijolão com quase 800 páginas que foi finalista do Booker Prize e do National Book Award. O livro é imenso não só pelo sua extensão, a edição física chega a ser intimidadora, mas também pela dimensão dos temas que aborda e da maestria com que tudo é narrado. Yanagihara faz literatura de gente grande.
A obra acompanha várias décadas da vida de quatro amigos que se conheceram nos tempos da faculdade. JB é um artista plástico que tenta encontrar espaço para os seus quadros na cena nova-iorquina; Malcolm é um arquiteto cuja riqueza da família de certa forma sempre o alienou a respeito de questões sociais; Willem é um ator de sucesso, que carrega consigo a dor da perda de seu irmão; e por fim temos Jude, o advogado brilhante e ao mesmo tempo frágil, que por detrás das cicatrizes em seu corpo combalido, guarda o segredo de um passado perturbador.
A relação entre estes dois últimos é uma das coisas mais lindas que a literatura contemporânea já produziu. É um negócio que faz você repensar suas convicções a respeito do que é ser verdadeiramente generoso e se doar aos outros.
Os quatro personagens são muito mais do que estas parcas linhas podem exprimir (muito mesmo) e qualquer tentativa de desvelar demais suas nuances só serviria para comprometer a leitura de quem ainda não encarou “aquele livro com um cara chorando na capa” (pois saiba que talvez ele não esteja chorando de dor). O que importa dizer é que a história de todos eles gravita ao redor de Jude: este é o personagem sobre o qual Yanagihara se debruçará com mais afinco ao longo de toda a obra.
Os quatro personagens são muito mais do que estas parcas linhas podem exprimir e qualquer tentativa de desvelar demais suas nuances só serviria para comprometer a leitura.
Jude sofre com dores terríveis nas pernas há muito tempo e ele tenta esconder esse problema de todos que estão ao seu redor, menos de Willem, de quem é mais próximo. Assim como também esconde um profundo sentimento de culpa e o hábito de se cortar com lâminas no banheiro. Basicamente o livro discute os efeitos dessa dor na vida de Jude e de seus amigos, e guarda como grande mistério o que realmente aconteceu em seu passado que lhe deixou cicatrizes físicas e psicológicas tão excruciantes. E quando as revelações começam a surgir, meu amigo, haja estrutura emocional para encarar.
Geralmente levo uma semana ou uma semana e meia para ler um livro desses um pouco maiores. Pois bem, passei um mês lendo Uma vida pequena. E não foi porque a narrativa é lenta ou coisa que o valha, pelo contrário, Hanya Yanagihara nos deixa inebriados logo de cara e o nível de fascinação com a história só faz aumentar conforme as páginas avançam. Ela consegue o efeito de fazer você querer morar ali dentro, conhecer aquelas pessoas, dividir as histórias, ser amigo de todos eles. Por isso é foda quando o livro termina. É uma despedida bem dolorosa. Mas voltando ao tempo de leitura, acabei me enrolando um mês para terminar o livro simplesmente porque cheguei a diversos momentos em que não conseguia parar de chorar ou de me sentir muito mal, triste pra caralho, etc. É sério.
A canalha da Yanagihara me deixou em prantos antes mesmo de completar a primeira centena de páginas, numa cena ridícula de simples: um amigo amarrando o cadarço do tênis do outro. Mas é um trecho tão carregado de emoção e significado, que você só não se emociona se tiver um repolho no lugar do coração.
Fiz longas pausas na leitura, chegando a atravessar outros livros na frente, pois não estava dando conta da carga emocional e, principalmente, porque não queria que o livro acabasse. Se você conseguir embarcar nessa leitura, se conseguir se envolver profundamente com esses personagens, é bastante provável que, assim como eu e várias pessoas, você se apaixone pelo livro. Ele entra fácil não só na minha lista de destaques do ano, como dos melhores que já li na vida (Jude é, sem dúvidas, um dos mais ricos e complexos personagens da literatura).
Tenho por hábito não ler nenhuma crítica de livro sobre o qual escreverei antes que o meu próprio texto esteja pronto. Também não vejo entrevistas dos autores, pois tento não contaminar muito a minha experiência. Se o livro me tocar, será pelo que ele é e pelo o que enxerguei nele, e não por outro tipo de sugestão. Digo isso tudo, pois muitos amigos comentaram que Hanya Yanagihara foi detonada por alguns críticos por algumas coisas que disse a respeito da recuperação de vítimas de abuso e também por supostamente exagerar no drama do livro, no nível de desgraceiras que acontecem (há até comparações com Tarantino), etc. Enfim, a influência desses argumentos sobre minha leitura foi: zero. Isso ocorreu não só porque discordo das críticas, mas também porque aquela história é muito maior do que tudo isso. Acreditei naqueles personagens desde o início e fui com eles até o fim.
Praticamente todo romance muito extenso sofre pelo excesso e geralmente tem vários trechos que poderiam ser cortados sem comprometer o todo. Uma vida pequena provavelmente se encaixa nisso, mas sinceramente não vejo como algo que chegue a incomodar.
Costumo fazer anotações e separar trechos para as resenhas, mas com esse livro foi diferente, pois me envolvi de tal forma com aqueles personagens que simplesmente já não fazia sentido tentar enxergar aquilo ali de maneira técnica, analisando enredo, linguagem, etc. Enfim, não cabia esse tipo de frieza neste caso, pois se tratava de uma leitura muito mais passional, até mesmo porque Uma vida pequena é praticamente um tratado sobre a amizade, sobre a culpa e o perdão. É difícil não se reconhecer ali em algum momento.
Enfim, isso tudo é só pra dizer que eu pretendia escrever uma resenha, mas não consegui, então só sobrou essa declaração de amor. Obrigado por tudo, Hanya Yanagihara.
UMA VIDA PEQUENA | Hanya Yanagihara
Editora: Record;
Tradução: Roberto Muggiati;
Tamanho: 784 págs.;
Lançamento: Março, 2016.