A escritora francesa Annie Ernaux, vencedora do Prêmio Nobel de Literatura em 2022, consolidou uma fama por conta de seu estilo único que é quase “anti-literário”. Sua escrita assume um tom franco que causa a sensação de não usar qualquer artifício estilístico – o que, por óbvio, é também um recurso linguístico. Mas suas obras costumam prender os seus muitos leitores por conta deste suposto choque causado por um testemunho biográfico sem floreios.
Em A Vergonha (Editora Fósforo, 2022; tradução de Marília Garcia), Annie Ernaux já abre o texto com um golpe no leitor: “meu pai tentou matar minha mãe num domingo de junho, no começo da tarde”. Quem tem um contato pregresso com a obra da escritora – em livros como O Lugar e O Acontecimento – já sabe de seu contexto vindo de uma família pobre do interior da Normandia, cujos pais jamais ascenderam socialmente.
Para quem sentiu empatia à condição de Annie Ernaux em O Lugar, no qual narra um certo sofrimento por essa distância irreconciliável que a instrução trouxe em relação aos progenitores, A Vergonha já inicia nos colocando diante do trauma: uma cena de violência do pai contra a mãe. Após a ocorrência, em 1952, ninguém mais ousou falar sobre o fato, que se consolidou no campo do interdito.
A narrativa sobre o interdito
A Vergonha merece a leitura pela abordagem desnuda de um tema que dificilmente se insere nas narrativas biográficas: a possibilidade de escrever sobre aquilo que não se quer falar.
Esta é a potência desse pequeno livro da escritora francesa: a forma com que ela vai traduzindo essa ruptura a partir de um léxico mais amplo do que normalmente temos para falar sobre o tema. Ao assistir à cena da agressão, aos 12 anos, Annie sente que algo mudou no seio familiar, embora isso nunca tenha sido compartilhado entre eles.
Por isso, Annie Ernaux transborda sua habilidade literária justamente ao transformar – com as óbvias limitações que envolvem aquilo sobre o qual não se fala – a fratura em palavras. “O pior da vergonha é que achamos que somos os únicos a senti-la”, ela escreve, traduzindo, de forma cirúrgica, o mecanismo da vergonha: o fato de nos isolar da experiência compartilhada.
Por outro lado, a vergonha traz uma certa cumplicidade silenciosa entre aqueles que a vivenciaram. E o intuito de Ernaux, aparentemente, é desvendar os bastidores invisíveis que possibilitam que essa família tivesse parcas ferramentas para lidar com o fato (a mãe, por exemplo, parece por panos quentes na agressão, preferindo deixá-la para trás). E isso, mais uma vez, tem a ver com questões de classe.
Na maior parte de A Vergonha, a escritora se debruça na descrição do contexto miserável (em sentidos que vão além do financeiro) da humilde família formada por comerciantes, que antes foram operários, mas que não tiveram muitas oportunidades para seguir outros destinos. As páginas são principalmente dedicadas ao pai, a quem – pelo olhar da filha – o sentimento de inferioridade aparecia sob a forma de uma certa rudeza intrínseca, que valorizava as coisas simples, a humildade da pobreza, e tendia a rejeitar os que o olhavam de cima.
Assim, vão se cruzando nessa história todos os vetores da vergonha familiar: a formação estritamente católica da mãe, sem espaços a questionamentos aos ditames da religião; a curiosidade sexual acerca dos corpos adolescentes em transformação; a quantidade de preconceitos contra todas as pessoas que fugiam às regras, como as mães solteiras, os comunistas, os divorciados, as mulheres que bebem.
Menos impactante que O Acontecimento, e muito próximo de O Lugar, A Vergonha merece a leitura pela abordagem desnuda de um tema que dificilmente se insere nas narrativas biográficas: a possibilidade de escrever sobre aquilo que não se quer falar.
A VERGONHA | Annie Ernaux
Editora: Fósforo;
Tradução: Marília Garcia;
Tamanho: 88 págs.;
Lançamento: Setembro, 2022.
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