Não pense na cidade de Guadalajara ou na virgem de Guadalupe. Esqueça as cores e as dores de Frida Kahlo, El Chavo, el charro, el churro. Deixe de lado os mariachis e as Marias, do Bairro e do Mar. O dueto de Santana e Maná. El día de los muertos, El día que me quieras. Desconsidere tacos, nachos e, sobretudo, as tais paletas, travestidas de mexicanas, mas que, em verdade, sequer existem na terra de Zapata (leia aqui). Ignore essas e tantas outras referências pop do único país hispano-hablante da América do Norte. Por fim, reflita: ¿qué queda de México?
Sobra muita coisa.
O México é terra onde muitas são as riquezas e incontáveis são as mazelas. É a respeito de sua versão menos colorida, do narcotráfico e das periferias, que escreve Juan Pablo Villalobos em Festa no Covil (2012) e Se Vivêssemos em um Lugar Normal (2013), ambos publicados pela Companhia das Letras. Dois livrotes quase despretensiosos, porém surpreendentemente densos. Dois livrotes que, mesmo em poucas páginas, apresentam um país em carne viva.
Se o México é território desconhecido, suas periferias são ainda mais ocultas. E a realidade do poder do narcotráfico não parece despertar interesse de outras nações.
No fim de semana, enquanto eu pensava na pauta da coluna de hoje, assisti ao filme Cidade do Silêncio (2006). A começar pela escolha dos atores, trata-se de uma produção repleta de clichês, estrelada por Jennifer Lopez e Antônio Banderas. O filme narra uma onda de assassinatos de mulheres que tomou conta da cidade mexicana de Juárez durante mais de uma década. Se acha que já leu, ou pelo menos ouviu falar, dessa trama baseada em fatos reais, você não está enganado; é sobre os mesmos assassinatos que está arquitetado, de maneira bem mais elaborada do que em Cidade do Silêncio, o clássico 2666, de Roberto Bolaño (não confundir com Roberto Bolaños, criador de El Chapulín Colorado – “más noble que una lechuga”).
Cito o filme porque em uma de suas primeiras cenas a jornalista Lauren Adrian, personagem de Lopez, é categórica ao dizer: “Ninguém liga para o México”. À sombra da grande potência, o México, na leitura de Lauren e talvez de boa parte dos norte-americanos, é um país deslocado, cujo desempenho na economia em nada lembra o de seu vizinho Estados Unidos. Por outro lado, a Cidade do México com seus quase 9 milhões de habitantes é uma das mais populosas do mundo, à frente da megalópole Nova York. O país de uma capital grandiosa, de tantos povos e culturas, ainda permanece sob o seu próprio sombrero. E se, à exceção de estereótipos como el tequilero e La Usurpadora, o México é território desconhecido, suas periferias são ainda mais ocultas. E a realidade do poder do narcotráfico, mesmo noticiada pelo mundo – tema de entrevista do Papa Francisco à Rede Televisa (assista aqui) -, parece não despertar interesse de outras nações.
Aí surge Juan Pablo Villalobos, mexicano radicado em Campinas, dando à luz o México dos invisíveis – ou, na definição do próprio autor, o México da “conciliação da vida e da morte”. As aventuras do garoto Totchili (Festa no Covil) e do adolescente Orestes (Se Vivêssemos em um Lugar Normal) têm como cenário um país exposto em suas feridas; um país, ainda assim, capaz de despertar devaneios fantásticos. A ambientação de Se Vivêssemos lembra a de Crônica de Uma Morte Anunciada, exemplar do realismo mágico latinoamericano. Mas, diferente do que ocorre no livro de García Marquez, o que atrai em Villalobos não é o horror sangrento e, sim, a fantasia que permeia as histórias dos dois chiquillos.
Percursos distintos me levaram a Villalobos, que assina um blog no site da editora que o publicou no Brasil: de sua passagem por Curitiba na ocasião da FLUPP, ano passado, ao episódio de estreia do Vlog do Livrada! (assista aqui). Demorei um pouco para começar a ler “aqueles-livrinhos-das-capas-gráficas-coloridas”, “talvez um artifício para disfarçar histórias que nem devem ser tão boas quanto rezam por aí”. As tais histórias? Excelentes.
Em meio à crise dos anos 80, Oreo (corruptela não fortuita de Orestes) é um dos sete filhos de um casal que habita o alto do Morro da Puta Que Pariu. Revoltado com a condição de ser apenas mais um, a tentativa de enquadrar sua família na classe média da cidadela de Lagos de Moreno inquieta o adolescente. O patriarca é um professor de educação cívica que, veja só, vocifera todo tipo de impropério assistindo ao noticiário. Assim como os nomes de sua prole, os xingamentos do pai de Aristóteles, Orestes, Arquíloco, Calímaco, Electra, Castor e Pólux são sensacionais.
“Àquele que liderava a corrida presidencial, meu pai só dedicou dois adjetivos: anão e careca. Nos seis anos seguintes, até a eternidade, foi ensaiando todas as variantes possíveis. Anão desgraçado. Careca de merda. Anão imbecil. Anão cuzão. Careca cuzão. Ladrão anão. Anão idiota. Maldito anão careca. Careca filho da puta. Anão filho da puta. Maldito careca cuzão imbecil filho da puta que pariu” (página 120).
A degladiação diária por quesadillas (uma espécie de pão de milho com recheio de queijo) me fez traçar um paralelo entre Se Vivêssemos e Capão Pecado, do paulistano Ferréz. Villalobos afirma que o Brasil, tal qual o México, tende a ser reduzido a suas excentricidades. Contra isso, os dois autores se valem da construção de cenas aparentemente banais – como o jantar de Oreo e o café da manhã de Rael, protagonista de Capão – na tentativa da “desestereotipação” do cotidiano. As tramas acabam por se revelar em suas miudezas.
Esboçado também em sua pequenez, Totchili é um garoto cercado pela fortaleza do pai, um dos maiores e mais procurados traficantes do país. Sob o viés de uma criança tão inocente quanto cruel, Festa no Covil se faz sobre um mundo entre a fabulação típica à infância e a barbárie de um país que desmorona frente ao caos. O encantamento suscitado pelas 85 páginas do livro está, justamente, na narração em primeira pessoa da criança-protagonista.
Festa no Covil se tornou um daqueles livros marcantes para todo sempre. A história “sórdida, nefasta, pulcra, patética e fulminante” de Totchili, el niño da mania por chapéus e do desejo em ter um hipopótamo anão da Libéria, roubou meu coração. A leitura dessa metáfora do México e da vida, mais do que recomendada, é necessária.
Dedicado a todas as crianças do Jardim Eucaliptos, no Alto Boqueirão; Totchilis da vida real.