Matadouro-cinco está para a literatura antibélica como 1984 está para a ficção distópica. Tanto Kurt Vonnegut quanto George Orwell construíram as suas obras-primas a partir do descontentamento, da desilusão e da miséria. Ambos os livros fincaram raízes em um retrato exagerado e satírico – ao menos para a época – de situações-limite como o cotidiano dos soldados no front durante a Segunda Guerra Mundial e a relação de subserviência entre o povo e o governo durante os regimes totalitários. Em 2019, nenhuma das histórias parece ter se desconectado da realidade, ao contrário, têm mais força e se tornaram ainda mais atuais.
Prestes a completar 50 anos, e fora de catálogo no Brasil há algum tempo, Matadouro-cinco ganhou meses atrás uma nova edição cuja tradução é do escritor Daniel Pellizzari. O romance é uma catarse íntima e visceral de Vonnegut, que se alistou no exército norte-americano em 1943 e participou no ano seguinte da Batalha das Ardenas, contraofensiva alemã na região da Valônia, na Bélgica, que deixou centenas de milhares de soldados mortos e foi um dos pontos-chave para a derrota das tropas nazistas.
Com um quê de normalidade, e certa extravagância, Vonnegut transformou Billy Pilgrim em seu alter ego – um sujeito que viaja no tempo após sobreviver a um acidente de avião. Nesse vaivém temporal, Pilgrim revisita momentos cruciais da sua vida, em especial, os dias que passou atrás de trincheiras e recria, com um tom anedótico e pictórico, a destruição deixada pela selvageria do combate. A comicidade, ao tratar de um tema tão delicado, causou estranheza e repúdio, logo após chegar às livrarias, algo pelo qual Martis Amis passaria em 2014 ao publicar A zona de interesse, uma sátira sobre os campos de concentração e as relações dúbias dentro desses gigantes abatedouros humanos.
Entretanto, por todo o livro, o que Vonnegut constrói são imagens que se desenham entre o choque e o absurdo, como uma exibição de atrocidades a céu aberto – nada diferente do que John Hersey registraria sobre as bombas atômicas que dizimaram Hiroshima. “Durante a guerra”, relembrou, “toda a minha divisão foi destruída e os alemães levaram os que sobreviveram para um campo de prisioneiros de guerra chamado Stalag 4B”.
O que Vonnegut constrói são imagens que se desenham entre o choque e o absurdo, como uma exibição de atrocidades a céu aberto – nada diferente do que John Hershey registraria sobre as bombas atômicas que dizimaram Hiroshima.
A captura, que aconteceu quando o escritor tinha apenas 19 anos, foi um trauma que o atormentou até os últimos dias. Como uma espécie de anti-Sinatra e anti-John Wayne, figuras que representavam um comportamento pró-beligerante, ao longo de toda a sua vida Vonnegut postulou pela paz, foi paraninfo em inúmeras formaturas, foi coroado guru da juventude hippie norte-americana e, anos mais tarde, quase no fim, chegou a escrever um livro contra a administração de George W. Bush – Um homem sem pátria, lançado aqui pela Record –, mas jamais sentiu que era realmente reconhecido pela sua literatura. “Eu nunca ganhei um prêmio ou algo assim. Nunca tive qualquer posição de autoridade. Eu sou aquilo que eu era na Segunda Guerra: um soldado raso”, lamentou.
Mantra pop
É interessante como Vonnegut se aproveita de nuances e fragmentos memorialísticos, e também da ficção científica clássica, para criar um romance experimental, elegante – a despeito da simplicidade – e ousado. Para além de um homem “solto no tempo”, como diz Antônio Xerxenesky no texto de introdução, Matadouro-cinco é um réquiem de delírios e paranoias, como a raça alienígena em forma de desentupidores com conversa com Pilgrim. Sem dever nada a Verne ou Wells, o autor de Cama de gato subverte as estruturas e as expectativas, desencana das concepções firmadas da representação e faz do discurso não um panfleto ideológico, mas um mantra pop.
Alguns dos personagens de Matadouro-cinco transitam entre as obras de Vonnegut – como o romancista Kilgore Trout e Eliot Rosewater, que aparecem em God Bless You, Mr. Rosewater (1965), Howard W. Campbell Jr, de Mother night e Bertram Copeland Rumfoord, parente próximo de Winston Niles Rumfoord, de As Sereias de Titã –, criando um universo muito íntimo. “Penso em como a porção de Dresden da minha memória me tem sido inútil, mas ainda assim tem sido tentador escrever sobre Dresden”, afirma o narrador em alusão ao bombardeio sobre a cidade alemã – outra tragédia testemunhada pelo escritor, que só escapou porque conseguiu se esconder em um matadouro, o matadouro de número cinco.
É impossível deixar de pensar no conjunto da obra de Vonnegut e em como Matadouro-cinco se encaixa nele. Se por um lado o romance foi a tábua de salvação – já que até então nenhum outro de seus livros havia chamado muita atenção de público e crítica –, lançando seu nome para o outer space literário, em outra perspectiva cravou na pele do autor a marca de um único livro que o “perseguiria” para sempre. “O livro ainda está à venda nas livrarias e, de vez em quando, tenho que fazer algo em relação a ele, como homem de negócio”, comentou em 1977 à Paris Review.
Coisas da vida
Durante o processo da nova tradução, Pellizzari precisou lidar com o bordão and so it goes, que marca o livro e se tornou uma espécie de senha e legado entre os leitores de Vonnegut. A solução adotada – coisas da vida – nas duas edições anteriores, da Artnova e da L&PM, foi remodelada para é assim mesmo.
A discussão, que pode parecer bobagem aos olhos dos leigos, rendeu no Twitter e foi o assunto da primeira – e até agora única – edição da newsletter criada pelo autor de Digam a Satã que o recado foi entendido. “Nunca gostei muito dessa solução, porque na minha leitura ela trai a intenção do Vonnegut. Se ele quisesse mencionar ‘vida’ a cada vez que falasse de morte no livro (é a deixa para a aparição de cada ‘and so it goes’), teria feito isso usando uma fórmula comum em inglês, como ‘life goes on’, ‘life is that way’, ‘that’s life’ etc”, comenta.
A ideia de que a prosa ficcional trabalha com o ambíguo e com aquilo que está escondido entre o que o autor permite que o leitor veja, literalmente, e o que foi deixado subentendido, Pellizzari optou por uma solução que não revelasse tanto em forma e sentido – principalmente em se tratando da pluralidade, no sentido denotativo, de “it”. “Para resolver essa minha insatisfação, procurei uma construção coloquial que fosse usada com alguma frequência em português brasileiro e tivesse o mesmo sentido de resignação quase fatalista, com pitadas de consolo. No fim das contas, a tradução mais literal possível acabou me parecendo a mais adequada. É algo que a gente fala toda hora quando comenta uma coisa que pode ser injusta, mas só poderia ter acontecido da forma que aconteceu”, afirma.
Pellizzari conseguiu preservar um dos aspectos mais importantes da obra de Vonnegut: a acessibilidade. Para o escritor, era fundamental alcançar o leitor, não apenas para que o livro vendesse, mas para que o recado fosse dado. Ao contrário d’O Arco-íris da gravidade, o caudaloso livro de Thomas Pynchon publicado em 1973 e que trata de temas semelhantes ao mundo de Vonnegut, Matadouro-cinco é direto, franco e, por vezes, didático.
Um exemplo: “Billy foi colocado na cama e amarrado, e uma dose de morfina foi administrada. Outro americano se ofereceu para tomar conta dele. O voluntário foi Edgar Derby, o professor de Ensino Médio, que acabaria sendo fuzilado em Dresden. É assim mesmo.”
Apesar de sempre escrever por meio de um olhar trágico, Vonnegut sempre quis mostrar o que a vida e o mundo podiam oferecer de bom. Nos momentos mais pesados de sua passagem pelos campos de batalha, escuta comédias no rádio para reencontrar a esperança que lhe escorria entre os dedos. Mesmo assim, um ano antes de morrer, vítima dos ferimentos decorrentes de uma queda em casa, Kurt Vonnegut foi categórico: “o mundo se encaminha para o fim. Não há dúvidas quanto a isso”.
MATADOURO-CINCO | Kurt Vonnegut
Editora: Intrínseca;
Tradução: Daniel Pellizzari;
Tamanho: 288 págs.;
Lançamento: Março, 2019.
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