O ano é 2000. Uma mulher linda e loira, como uma modelo, na casa dos seus 20 e poucos anos e habitante de Nova York, resolve desenvolver um grande projeto: vai passar um ano inteiro se dopando com remédios e dormindo. A vida parece ganha, as contas estão no débito automático, e essa mulher (que nunca chega a ser nomeada) só pensa nas formas das quais pode fazer uso para hibernar, tal como os ursos.
Em poucas linhas, essa é a sinopse de Meu ano de descanso e relaxamento (todavia, 2019; tradução de Juliana Cunha),livro da norte-americana Ottessa Moshfegh. Tem algo de deprimente, é claro – pois obviamente nossa protagonista foge de algo (mas do quê?) – mas também tem um tom profundamente cômico. A mulher só quer dormir e assistir às suas fitas VHS preferidas. Seu ídolo é a atriz Whoopi Goldberg, praticamente um ser onipresente nos filmes hollywoodianos dos anos 1990.
Cheguei a esse livro a partir de uma série de recomendações de amigos, que publicavam em suas redes sociais elogios rasgados à pequena obra de Ottessa Moshfegh, o que atiçou minha curiosidade. Após a leitura, parece-me que é fácil identificar quais as razões para se detestar esse livro, já que é carregado do que chamaríamos hoje de white people problems – pois há aqui uma protagonista aparentemente sem qualquer problema visível, além de um grande vazio existencial. Não há nada o que buscar: ela se interessa por arte, mas o mundo artístico é vazio e pretensioso; seus pais são falecidos e não eram exatamente afetuosos; ela tem há anos um crush, que seria o mais próximo que já chegou do amor, mas, ao mesmo tempo, sabe que o cara é um yuppie escroto.
O que seduz no livro é justamente a narrativa honesta e debochada, em que a protagonista se esforça em compartilhar suas tiradas ácidas num nível de franqueza como se não houvesse amanhã.
Por isso tudo, chama-me mais a atenção ainda o tom cult desse livro adorado por muitos, pois traz aqui uma protagonista que talvez represente uma pulsão invisível e presente em todos nós: o desejo de simplesmente desaparecer, de dormir e não mais ter que lidar com nada. De estar em um limbo em que não precisamos mais enfrentar o mundo.
Claramente, ela está em luto (perdeu há pouco tempo os pais), mas só quer passar por isso da forma mais fácil, que é dormir – o que seria entendido como covarde em um mundo atropelado pelos discursos de “resiliência” e “superação” típicos da autoajuda. Por isso, essa mulher se torna uma heroína de todos nós, que escondemos essa vontade nos recônditos da alma.
Mas o que seduz no livro é justamente a narrativa honesta e debochada, em que a protagonista se esforça em compartilhar suas tiradas ácidas num nível de franqueza como se não houvesse amanhã. Ottessa Moshfegh centra a obra basicamente em cinco personagens: além da mulher loira e linda que só dormir, têm peso na trama a sua melhor amiga Reva, a única pessoa que a visita, uma bulímica desesperada por se encaixar numa Nova York superficial; o artista pretensioso Ping-Xi, cujas instalações vanguardistas envolvem o assassinato de animais; o “namorado” eventual Trevor, com quem tem um caso intermitente na base de muita chantagem emocional; e a doutora Tuttle, uma psiquiatra picareta, encontrada via classificados, e que receita à protagonista remédios controlados como se fossem balas.
São da boca da doutora Tuttle, aliás, que saem as melhores frases da obra, um festival de irresponsabilidades e de alheamento em seu atendimento médico – carregando em Meu ano de descanso e relaxamento um tom crítico à medicalização desmedida e à ideia de que os psicotrópicos seriam soluções rápidas aos problemas contemporâneos, tal como dormir. O que não falta neste livro são nomes de remédios, citados à revelia e tomados pela protagonista em combinações feitas como se preparasse um drinque (e, por vezes, com efeitos engraçadíssimos).
Bastante elogiado pela crítica, Meu ano de descanso e relaxamento surpreende justamente pelo tom pouco valorativo em relação à história que conta. Seria mais fácil ou óbvio narrar esta trama como a da derrocada de uma mulher que se afoga em remédios, ou uma jornada de mergulho no vazio que desemboca em algum tipo de superação. Mas Ottessa Moshfegh não segue esse caminho e, por isso mesmo, nos entrega um dos livros mais estranhamente engraçados dos últimos anos.
MEU ANO DE DESCANSO E RELAXAMENTO | Ottessa Moshfegh
Editora: Todavia;
Tradução: Juliana Cunha;
Tamanho: 240 págs.;
Lançamento: Junho, 2019.