Bárbaro. Chocante. Herege. Incestuoso. Poucos são os adjetivos lisonjeiros que os leitores mais sensíveis aplicam à obra de J. G. Ballard – um típico escritor que não aceita meios-termos. É aquela velha – e perigosa – história: ame-o ou deixe-o. Apaixonado por temas pouco convencionais à normativa literária, Ballard rompeu as estruturas ao se distanciar do bom-mocismo que se esperava de um sujeito como ele. Alguns de seus livros – como Crash, sobre pessoas sexualmente atraídas por acidentes automobilísticos, e Atrocity Exhibition, uma coleção de textos experimentais – povoam o imaginário de público e crítica quando o assunto é perversão e sagacidade.
Tudo ia bem até 2007, quando descobriu um câncer de próstata em estágio avançado. Ao saber que era o fim, não fez muito esforço para reverter a situação que, claro, era irreversível. A partir daquele momento, a única urgência de Ballard era contar a sua história. Milagres da vida: de Shangai a Shepperton (tradução de Isa Mara Lando) destoa completamente de tudo o que já havia escrito. Nem mesmo O Império do Sol, talvez seu texto mais convencional, se aproxima da crueza e do tom confessional de sua autobiografia.
Ballard revisita sua vida como quem olha pelo retrovisor. Da vida confortável na China, onde o pai trabalhava como químico em uma industrial têxtil, ao campo de prisioneiros na Segunda Guerra e a volta à Inglaterra, o autor cria uma prosa precisa, sem cortes. Os episódios se acumulam cronologicamente e são passados em revista com a minúcia que a memória lhe permite. As experiências pessoais se fundem à História e a família Ballard torna-se também protagonista de situações-chave de um dos maiores conflitos do século XX.
Os leitores mais radicais, quem sabe, não concordem, mas a autobiografia de Ballard é uma aula de literatura e uma lição de vida.
Milagres da vida é, simultaneamente, desconcertante e professoral. É impressionante saber que muitos das narrativas violentas de Atrocity Exhibition foram escritas no intervalo de uma vida doméstica para lá de convencional. Muito do seu olhar sobre o mundo é o resultado das horas assombrosas na China, dos momentos de tensão como piloto da Força Aérea Real e do acachapante tédio do estudo universitário.
Ballard não desconstrói a figura que há em torno de si, mas – com uma dose cavalar de humor – chama para um olhar despretensioso e menos viciado. Milagres da vida não é, nem de longe, um livro condescendente ou uma tentava de retratação ou autopiedade, porém, está na contramão de tudo o que se espera de alguém capaz de parir Terroristas do milênio e O Reino do Amanhã. É comovente sem ser piegas, elegante sem academicismo e enxuto sem ser lacônico.
Os leitores mais radicais, quem sabe, não concordem, mas a autobiografia de Ballard é uma aula de literatura e uma lição de vida.
MILAGRES DA VIDA | J. G. Ballard
Editora: Companhia das Letras;
Tradução: Isa Mara Lando;
Tamanho: 248 págs.;
Lançamento: Julho, 2009.
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