A prosa de Nicole Krauss se assemelha ao mar. Às vezes calmo, deixa o registro discreto de seu movimento na areia; são linhas, contornos e texturas que logo esvanecem. Quando revolto, traz para a praia resquícios de seu interior, memórias feitas de conchas quebradas e restos de antigos naufrágios que permanecem expostos até que a maré resolva recolhê-los. A cada página, essas ondas parecem tocar os nossos pés.
Em A Memória de Nossas Memórias, lançado pela editora Companhia das Letras com tradução de José Rubens Siqueira, a autora nova-iorquina compõe uma espécie de mosaico imperfeito, composto por diversas histórias que se interligam com maior ou menor proximidade a partir de uma antiga escrivaninha.
Há uma jovem norte-americana que herda o móvel de um poeta chileno que foi assassinado pelo regime de Augusto Pinochet; temos também em Londres um marido intrigado com o passado de sua falecida mulher; e em Jerusalém acompanhamos um homem empenhado em recuperar móveis antigos, de pessoas que os perderam durante os anos de guerra. Outros personagens importantes vão surgindo ao longo da narrativa e nem todos apresentam alguma ligação direta com os anteriores ou mesmo com própria escrivaninha.
Krauss parece interessada em captar a sensação de desnorteio, tanto físico, quanto emocional, daqueles que perderam o seu lugar no mundo. Este lugar pode ser tanto a sua pátria, quanto a pessoa que você ama, o que movimenta os personagens é essa tentativa de apanhar o tempo que insiste em escapar pelas frestas da memória. Daí a ideia de relacionar os registros pessoais ao misterioso móvel, cheio de gavetas, uma delas sempre trancada. Os objetos são os registros físicos daquelas existências, é o tempo cravado na madeira: “Certas mesas, cadeiras, abajures ou sofás eram encaixotados e outros chegavam para tomar os seus lugares. Assim, as salas estavam sempre mudando, assumindo climas misteriosos deslocados das casas e apartamentos cujos donos tinham morrido”.
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Os personagens de A Memória de Nossas Memórias estão sempre orbitando uma espécie de não-lugar, afundados numa angustiante expectativa de retorno no tempo/espaço.
A busca por objetos perdidos ao longo de tempo é uma tentativa de reconstituir um passado estilhaçado por bombas e escolhas difíceis, “Talvez todos os exilados tentem recriar o lugar que perderam por medo de morrer em um lugar estranho”. Os personagens de A Memória de Nossas Memórias estão sempre orbitando uma espécie de não-lugar, afundados numa angustiante expectativa de retorno no tempo/espaço, que em geral se mostra apenas frustrante, como quando o viúvo tenta ler os textos de sua mulher que sofria de Alzheimer: “A maior parte da escrita na página de cima estava riscada, deixando apenas algumas linhas ou frases aqui e ali. O que conseguiu entender era em grande parte sem sentido e, no entanto, nos riscos maníacos e nas letras incertas era evidente a frustração de Lotte, a frustração de alguém tentando transcrever um eco que morria”.
A autora tem uma compreensão a respeito dos porões da nossa mente e uma capacidade de expressá-los das mais diversas maneiras, que chega a impressionar. A prosa de Nicole Krauss é muito madura e isso é facilmente identificável não apenas na sofisticação da linguagem (abra o livro em qualquer página aleatória e provavelmente você se deparará com alguma frase impressionante), mas também da estrutura narrativa. A conexão entre as histórias nem sempre é fluida e isso é fundamental para que tudo aquilo não caia em truques baratos de roteiros de filmes americanos. Não há coincidências bobas para forçar aproximações estapafúrdias, nada disso, as experiências dos personagens vão se acumulando, às vezes de maneira bastante densa, e aos poucos o leitor vai se dando conta que existe um painel muito maior ali, que algo grandioso (tal qual a própria vida) está sendo construído a partir das pequenas particularidades daquelas pessoas.
Eis um exemplo de como a autora transforma uma descrição aparentemente simples em algo mais belo e profundo, sem precisar apelar para frases forçadas ou lirismos deslocados na narrativa: “Ficamos parados no hall da casa que um dia tinha sido nossa, uma casa cheia de vida, cada quarto transbordando de riso, discussões, lágrimas, poeira, do cheiro de comida, dor, desejo, raiva, e silêncio também, o silêncio atado com força de pessoas apertadas umas contra as outras no que se chama de família”. É bem difícil não se sentir tocado por algo assim.
A Memória de Nossas Memórias é um livro que exige certo tempo, não que os outros também não demandem isso, mas ele está naquele grupo de romances para serem lidos com bastante calma, cuja elaboração é tão cuidadosa que merece fruição e qualquer pressa pode ser bastante comprometedora. É o tipo de obra de arte que interfere na sua respiração, que modifica o seu olhar. Enfim, é daqueles livros que realmente importam.
A MEMÓRIA DE NOSSAS MEMÓRIAS | Nicole Krauss
Editora: Companhia das Letras;
Tradução: José Rubens Siqueira;
Quanto: R$ 40,90 (344 páginas);
Lançamento: Maio, 2012.