A relação dos países ocidentais com as histórias em quadrinhos e seu lugar na literatura é complexa, pois o mercado ocidental de quadrinhos tende a ser associado, assim como a animação, ao público infantojuvenil. Embora existam quadrinhos de todos os tipos, é comum que muitos ainda pensem que as HQs se resumem aos heróis da Marvel e da DC. No Japão, os animes e mangás ocupam um papel mais amplo e são um grande pilar cultural, abordando os mais diversos gêneros e atingindo todos os tipos de público.
Dentre os grandes nomes do mundo dos mangás, poucos são mais relevantes que o de Kentaro Miura, o mangaká por trás da série. Entre seus contemporâneos e sucessores, Miura é reverenciado como uma figura quase mitológica devido à sua criatividade sombria e aparentemente sem limites, bem como ao seu talento inigualável para a representação gráfica do mais profundo horror existencial.
O trabalho dos mangakás, que frequentemente precisam produzir capítulos semanais por anos a fio, é conhecido por sua intensidade excessiva. De fato, são muitos os artistas que sofrem de burnout e de outros problemas de saúde física e mental. Miura foi um dos autores afetados por esse modelo de trabalho imoderado e necessitou de diversos hiatos ao longo da carreira. Infelizmente, no último dia 04 de maio, o autor faleceu subitamente aos 54 anos de idade, deixando para trás uma obra inacabada que, mesmo assim, mantém um imenso valor cultural.
‘Berserk’: perseverança diante do horror
Considerado um dos mangás mais importantes e de maior influência cultural, Berserk, o mangá seriado que Miura desenvolveu ao longo de 32 anos, é uma obra violenta e visceral e está longe de ser recomendável ao público juvenil. Trata-se de uma série de cunho definitivamente adulto, não apenas por conta da ultraviolência e da sexualidade explícita que permeiam a obra, mas pela complexidade de temas psicológicos e morais abordados pela narrativa e pelo nível de horror absoluto que poucas obras da ficção especulativa são capazes de alcançar.
Apesar de se encaixar no gênero do horror, a história de Berserk tem fortes traços trágicos dignos da mitologia grega. Os quase 380 capítulos da série acompanham a jornada de Guts, guerreiro de força descomunal amaldiçoado a batalhar criaturas malignas até o fim da vida, e sua busca por vingança contra o ex-companheiro Griffith, talvez o melhor e mais complexo antagonista de todos os mangás. Enquanto Guts é a encarnação da máxima perseverança humana mesmo diante dos mais inimagináveis horrores, Griffith é o reflexo da ambição e da cobiça insaciável, e opera como uma força implacável que não mede esforços para alcançar o que almeja.
Considerado um dos mangás mais importantes e de maior influência cultural, Berserk, o mangá seriado que Miura desenvolveu ao longo de 32 anos, é uma obra violenta e visceral e está longe de ser recomendável ao público juvenil.
Desde o início da trama, fica claro que Guts e Griffith, além de agentes diametralmente opostos, têm um passado muito sombrio em comum. Aos poucos, Miura revela a história de sangue, traição e tragédia que levou essas duas personagens a trilharem caminhos tão opostos –– e que inevitavelmente culminarão em um terrível conflito final.
O legado de um mestre
Além da sua capacidade de criar personagens multidimensionais e de trabalhar com questões morais e existenciais complexas, Miura é amplamente reconhecido por seus pares e pela legião de artistas que inspirou por conta de sua técnica impecável e da força da sua arte. Um prodígio do desenho que escreveu e ilustrou seu primeiro mangá aos 10 anos de idade, Miura elevou o meio dos mangás aos seus máximos limites, mesclando influências tão díspares como M. C. Escher, H. R. Giger e H. P. Lovecraft.
Utilizando com maestria os contrastes brutais entre tinta e papel, Miura criou algumas das páginas mais impressionantes já vistas no meio, apresentando criaturas monstruosas e cenas surrealistas minuciosamente detalhadas com um nível assombroso de precisão e horror. O legado de Miura influenciou esteticamente todo o gênero da dark fantasy, e é especialmente visível em obras como os jogos da série Dark Souls.
Infelizmente, com o falecimento inesperado do autor, a resolução do tão esperado conflito entre Guts e Griffith deverá permanecer em aberto. Mesmo que os assistentes de Miura deem continuidade à obra com base nas instruções do autor, é improvável que os fãs de longa data da série ficarão satisfeitos com um clímax (aguardado há mais de 30 anos) produzido por outras mãos.
Ao meu ver, aqueles que lamentam excessivamente pelo fim incompleto da história perdem de vista a verdadeira tragédia dessa perda, que é o fim da vida de um ser humano e de um artista fenomenal. Afinal, graças às inesquecíveis personagens e cenas de intensidade ímpar, Berserk não perdeu a força central que moveu sua narrativa por tantos anos. A jornada de Guts pode ter ficado inacabada, mas ainda merece ser lida por quem quiser ver de perto os frutos sombrios da dedicação de três décadas de um artista no topo absoluto do seu meio.
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