Se um dia a literatura, o jornalismo e as artes visuais foram forças distantes e ambivalentes, essa antítese caiu por terra quando Valêncio Xavier (1933 – 2008) publicou, nos longínquos anos 1980, O mez da grippe, sua obra-prima inigualável e que acaba de ser relançada pela editora curitibana Arte & Letra. Nesse romance-colagem, em que recortes de jornais, depoimentos reais e ficcionais se misturam, o escritor compõe um mosaico perfeito e aterrador de uma Curitiba de joelhos pela gripe espanhola – que assolou o mundo em 1918 e, como se vê, não poupou a capital paranaense.
Se ler O mez da grippe já é uma experiência singular, a leitura durante a pandemia escancara um paralelo bastante sinistro. O livro, que explora as paranoias e as lendas que envolvem a epidemia, coloca em suspenso a ideia de humanidade e humanismo. Ao usar os elementos jornalísticos Valêncio cria um retrato memorialístico da “passagem” da grippe, porém, ao combinar esse ingrediente histórico ao tom jocoso das inflexões ficcionais, a narrativa ganha um ar mítico, ao mesmo tempo em que oferece ao leitor uma investigação estética.
Sob essa perspectiva, o livro é uma espécie de performance narrativa multifocal: a contação da narrativa em primeiro plano – como uma leitura superficial –; depois, a experiência visual – em que se tenta encontrar os pontos imagéticos que dão corpo à estética de Valêncio; posteriormente, uma análise história e social da uma cidade-metropóle assolada pela peste no começo do século passado – seus costumes e tudo mais –; e, por último, uma leitura que envolve todas as anteriores de uma só vez em um grande labirinto.
Antes que David Foster Wallace (1962 – 2008) criasse a sua literatura cheia de hiperlinks, por meio de notas de rodapé, Xavier inaugurava essa possibilidade elevando a estratégia – aqui sem desviar do texto – a uma potência poucas vezes alcançada.
O ineditismo d’O Mez da grippe explica a sua parca valorização como obra literária, ainda que tenha sido peça-chave para importantes autores contemporâneos como Joca Reiners Terron, Lourenço Mutarelli e Veronica Stigger.
Em simultâneo, O mez da grippe estabelece uma narrativa subjacente, principalmente, na figura de Dona Lúcia, cujos depoimentos, apresentam uma espécie de história não contada, às raias do mexerico e da fofoca. São ferramentas que dão leveza a um livro povoado de surtos, mortes, missas de sétimo dia, criando uma relação cômica em uma obra tão bonita quanto atual.
Manifesto
O ineditismo d’O mez da grippe explica a sua parca valorização como obra literária, ainda que tenha sido peça-chave para importantes autores contemporâneos como Joca Reiners Terron, Lourenço Mutarelli e Veronica Stigger. Ao mesmo tempo, percebe-se uma vinculação interessante à ideia da literatura como manifestação visual, algo que permeia bastante a obra literária de Nuno Ramos, por exemplo.
Assim, Valêncio Xavier consegue, a partir de um retrato histórico, revelar a atualidade atroz de um país que será sempre a nação do futuro, mas que deixa de lado o passado e esconde de si mesmo o presente nebuloso que vive. Diante de tudo isso, chamar O mez da grippe – apenas – de literatura é reduzir uma obra a um rótulo de linguagem artística.
O MEZ DA GRIPPE | Valêncio Xavier
Editora: Arte & Letra;
Tamanho: 76 págs.;
Lançamento: Julho, 2020 (atual edição).