Walter – Karl Ove Knausgard confirmado no Brasil, ele vem à Flip desse ano. Imagino que ele vai responder as perguntas como se fosse um velho conhecido que resolve se abrir meio do nada. Bem do nada, porque bancando o carrasco a literatura dele trata também disso: o nada. É uma conversa alongada por muito, muito tempo, o Karl Ove começa a falar de quem foi – ou de quem ele quer nos convencer que foi – e é tudo absolutamente prosaico, mas tem algo na maneira dele que nos prende à narrativa. Será que a gente descobre com o norueguês por aqui?
Eder – Engraçado, quando comentei sobre o Karl Ove em sala de aula logo após o lançamento do primeiro livro (A Morte do Pai), um aluno me perguntou “é esse autor que leva umas quatro páginas para descrever como ele escova os dentes?”. Até que faz sentido, pois ele provavelmente poderia escrever coisas belíssimas sobre a arte da profilaxia bucal, mas isso também pode nos levar a uma percepção limitada de sua obra: a de que ela seria uma narrativa superficial ou um mero exercício de estilo. Temos dificuldade para definir esse “algo” que tanto nos hipnotiza na obra dele, justamente porque ele conseguiu criar uma forma de contar histórias com a qual talvez nunca tenhamos nos deparado, ou que não estivéssemos mais acostumados na literatura contemporânea. Espero que na Flip ele não explique nada disso e nos deixe continuar inventando suposições mirabolantes.
Espero que na Flip ele não explique nada disso e nos deixe continuar inventando suposições mirabolantes.
Walter – É uma mistura do que podemos chamar de hiper-realismo – o excesso de minúcias descritivas para recriar a impressão de que estamos lendo o que entendemos por “real” – com autoanálise. É como se o Karl Ove enquanto autor tivesse plena consciência de quem é/foi enquanto personagem, borrando a fronteira entre um e outro nessa literatura quase banal de prosaica, mas que acaba nos convencendo. É quase uma confissão às avessas, como se ele dissesse “minha vida é essa, é isso que eu consigo e quero contar do que vivi, não há nada de espetacular ou mirabolante nisso tudo, mesmo eu tendo alguma vantagem do comodismo de olhar para meu eu passado com algum tempo de distância, e independente de eu ser muito bondoso ou severo comigo mesmo, eu não tenho absolutamente nada além disso para te contar”. Implícito, também nos diz que vamos acompanhar a história até o fim, talvez pela sensação de toparmos com alguém franco o bastante para falar de si como se não se conhecesse – mas se conhece e bem. Claro que isso tem seus riscos, digamos. Há passagens que fluem muito facilmente, eu ri muito de algumas narrações do Ilha da Infância, terceiro livro da saga. É como se ele tivesse aprendido a rir de quão infantil foi e tivesse aceitado isso. Meio quando a gente encontra um velho amigo, lembra de umas antigas e ri da própria ingenuidade, e segue em frente numa boa. Mas tem outras passagens que são irritantes. Particularmente detestei algumas passagens em que o Karl Ove Knausgard bancou o ressentido da família e pesou demais a relação com o pai.
Eder – Acho que o Knausgard meio que implode nossa noção do que é banal, pois se por um lado ele nos arrasta para esse aparente excesso de realidade (que no fundo está longe de ser real, assim como uma foto não é a realidade, mas, sim, uma reprodução captada a partir de um ângulo específico), por outro, ao esmiuçar a banalidade, ele arranca dali significadores muito maiores com os quais muitos leitores acabam por se identificar. No segundo livro, Um Outro Amor (o meu favorito), há um trecho em que ele vai a uma festinha infantil, se sente completamente deslocado e começa a fazer longas divagações sobre as pessoas ali presentes ao passo em que tenta socializar com elas. Qualquer pessoa sem muito traquejo social pode se enxergar naquela situação, e quem não sofre com isso passa a ter uma dimensão do quão angustiante isso é. E o bacana é que ali não tem nada demais, nada de firulas estéticas ou filosóficas, é só um cara numa festa se sentindo sozinho. É aquela coisa de enxergar a vida comum através de uma sensibilidade mais apurada que a nossa, pode ser enfadonho para uns e encantador para outros. E aí é mais uma questão subjetiva mesmo, pois por exemplo no meu caso, abraço a relação dele com o pai e não a acho forçada, pois vejo ali a reprodução de muitos pavores que eu mesmo vivi com relação ao meu pai. Enfim, acho que o grande lance do norueguês é a empatia.