Gillian Flynn, definitivamente, vai além do best-seller puro e simples. A adaptação recente de Objetos cortantes – seu romance de estreia e cuja série é estrelada por Amy Adams – traz nova luz à obra da autora que ganhou o mundo com o thriller Garota exemplar – transformado em filme por David Fincher. Flynn, que antes de se dedicar inteiramente à literatura havia trabalhado como jornalista, sabe como poucos criar uma narrativa imagética, descritiva e hard-boiled sem apelar para o banal ou para o óbvio.
A tríade dá deixa de o porquê seus livros são levados para as telas com facilidade e fidelidade. Essa ligação com a sétima arte a levou a escrever – a quatro mãos com o diretor Steven McQueen – o roteiro de Viúvas, um dos grandes filmes de ação do ano passado.
Não é difícil imaginar que a autora bebe diretamente nos cânones da literatura policial. Os ecos de Agatha Christie e Conan Doyle, ou mesmo Patricia Highsmith e Georges Simenon, são perfeitamente visíveis e assimiláveis. Lugares escuros – dos três romances, o menos engajado – é um bom exemplo do pulp moderno, misturando cultura pop às narrativas detetivescas. Flynn usa uma arma básica para capturar o leitor: a curiosidade levada às últimas consequências.
Em Garota exemplar, o mote gira em torno do desaparecimento de Amy, aparentemente uma mulher comum, mas que esconde dentro de si muitos demônios. Em Lugares escuros, o que move a trama é o assassinato de duas garotas e as suspeitas de Camille Preaker. Lugares escuros não é menos visceral: a traumatizada Libby Day busca a verdade sobre um crime brutal que dizimou sua família.
As premissas e a condução das histórias são, necessariamente, inovadoras. O destaque fica mesmo pela manipulação do leitor. Como peça a juntar todas essas narrativas está a dor e a violência. “Sempre fui fascinada pela violência e pelo motivo das coisas darem errado, principalmente para pessoas as quais as coisas não deveriam dar errado. Acho que ou as pessoas querem olhar embaixo da rocha ou não. Eu sempre fui do tipo ‘o que há sob essa pedra?’ Sempre”, disse durante entrevista em 2018.
Em se tratando de uma literatura mais comercial, sem o compromisso das frivolidades intelectuais e acadêmicas, Gillian Flynn é uma das grandes narradoras de nossos tempos.
Quando Camille traz à tona sua primeira suspeita concreta sobre autoria dos assassinatos, a escritora nos dá uma falsa resolução ou, dependendo a interpretação, uma dupla solução para Objetos cortantes. A inspiração da trama, porém, não veio exatamente do romance policial, mas de Sobre meninos e lobos, de Dennis Lehane. “Por muito tempo, Objetos Cortantes era apenas mulheres em uma série de salas, falando sobre violência e raiva. De repente eu entendi que poderia anexar um mistério ao livro, e era isso que me daria o motor da história. Eu aprendi que mistérios são uma maneira de eu falar sobre todas as coisas que eu quero falar”, afirmou na mesma entrevista. Em Lugares escuros, reproduziria, sem o mesmo impacto, a ideia da solução falsa. Já Garota exemplar leva o leitor por um caminho tortuoso: um diário amargo contra um marido negligente versus um homem dividido entre a culpa e o medo. Sem nunca tentar julgar seus personagens, Flynn nos faz mudar de lado algumas vezes antes da revelação.
Em se tratando de uma literatura mais comercial, sem o compromisso das frivolidades intelectuais e acadêmicas, Gillian Flynn é uma das grandes narradoras de nossos tempos. Diferentemente de outros “ícones” da literatura pop, como Dan Brown ou E. L. James, a escritora não é formulaica ou derivativa, simplesmente, ou quando é, existe um motivo dentro da história. Na obra de Flynn não existe acaso: tudo está amarrado de maneira coerente e coesa como poucas vezes vimos em uma literatura menos pretensiosa.