Mario Benedetti é, talvez, o mais uruguaio de todos os escritores de seu país. Mesmo durante o exílio na Espanha, quando o Uruguai atravessava um regime militar, Benedetti não deixou de se sentir como alguém que ainda morasse em Montevidéu e fosse passar as férias em Punta del Este. Quando de seu regresso, trouxe consigo a vontade de retomar a vida de onde parou, mas sabia que era impossível, que estava para sempre atrelado à sua partida forçada.
O retrato dessa jornada, interior e intercontinental, é o ponto-chave de Andaimes, romance de redenção e reencontro publicado em 1996, cujo protagonista, Javier, é um desexilado, alguém que vaga entre os não-lugares de sua vida: Espanha, Uruguai, Argentina e Brasil. Depois de muito tempo no exterior, Javier – que deixou mulher e filha na Europa – já não consegue mais se conectar com o país, sua família e seus amigos, como se flutuasse entre o passado e o pressente.
Em meio a esse desajuste social, o sujeito busca se apaixonar, encontrar nos braços de Rocío a cura para o vazio construído pelo medo de ainda ser perseguido pelos militares – preocupação que se revelará justa – e pela solidão imposta por aqueles que ainda temem qualquer vínculo com um jornalista conhecido pela atuação contra o regime. Benedetti usa o romance para examinar – com minúcia e realismo – as cicatrizes deixadas em si próprio e também em sua nação.
Qualquer paralelo entre a vida de Javier e Benedetti não é mera coincidência, ainda que o autor negasse um tom autobiográfico. “A ficha biográfica de Javier não tem muito a ver comigo. Não é um romance autobiográfico, a não ser alguns segmentos em comum, mas não são somente meus e de Javier, mas de todos os que voltaram ao país. As surpresas, as mudanças de estilo das pessoas, os rastros que deixou a ditadura. É um pouco do que todos temos visto”, comentou em entrevista à época da publicação.
Benedetti é, sem dúvidas, um nome à altura de figurar ao lado de Borges, Cortázar e García Márquez como um clássico absoluto.
Contraponto
Em certa medida, Andaimes é um contraponto para Montevideanos, cujos contos esmiúçam o cotidiano mais ordinário da capital uruguaia duas décadas antes do golpe. Os livros, separados por 40 anos, compõem uma perspectiva ampla e precisa dos efeitos do medo e da resignação. Se por um lado os 19 relatos que formam a coletânea são um olhar entre o progresso e a nostalgia, o romance é como um cristal partido, um vidro estilhaçado à pedra.
Obviamente, contos como “O Orçamento” e “A Família Iriarte” já tratavam da burocracia e dos obstáculos que travavam – e ainda travam – o homem comum. Como Galeano, Benedetti olhava para além do seu umbigo. Era, como Bolaño, antes de tudo, um escritor latino-americano. “Os namorados” e “As Xícaras” são passeios pela cidade, pelas suas calles e ramblas, acompanhando como turistas interessados não no monumento a Artigas – na Plaza Independecia –, mas na intimidade da gente comum.
Ainda assim, e mais que tudo, nunca quis abandonar aquilo que fazia dele também um montevideano legítimo. “O Uruguai não é o mesmo que eu deixei, tampouco é o país que imaginei que ia encontrar. Eu estava muito bem informado de tudo o que acontecia, mas não era o mesmo que imaginei. Eu vivi meu exílio em quatro países de língua espanhola, me adaptei muito bem. No exílio se dá um fenômeno de osmose, a pessoa dá tudo o que pode para agradecer ao país que a acolhe”, afirmou.
Montevideanos e Andaimes – como A Trégua e Obrigado pelo fogo – são voos livres sobre uma das mentes mais brilhantes da literatura latino-americana: uma voz capaz de perfilar a identidade de seu povo e fazê-lo desterritorializado. Benedetti é, sem dúvidas, um nome à altura de figurar ao lado de Borges, Cortázar e García Márquez como um clássico absoluto.