Apesar de ser um dos textos primordiais para a compreensão da história e cultura ocidentais, discussões em torno da Ilíada, poema épico atribuído ao lendário bardo cego Homero, parecem continuar restritas ao ambiente acadêmico no Brasil. Engessadas em um linguajar técnico e um tanto elitista, análises dessa obra crucial frequentemente resultam em intermináveis discussões acerca do mérito de determinadas traduções sobre outras, das particularidades da língua grega da Antiguidade, ou mesmo dos arquétipos heroicos e suas relações intertextuais com a literatura e a arte contemporâneas.
São temas de grande interesse, certamente, mas reservados ao público mais erudito, que costuma ter mínimo contato com as múltiplas vivências e visões de mundo dos leitores “reais”. Mesmo a essencial Questão Homérica (dilema histórico que põe em dúvida a existência de um único autor para a Ilíada e a Odisséia) é pouco ou nada discutida em nossas escolas, ambientes em que a Ilíada, quando abordada, é analisada apenas em sua relação com os célebres mitos da Guerra de Troia – um conto de fadas para encantar as crianças, nada mais.
Este é um destino realmente lamentável para uma obra de quase três mil anos, cujos milhares de versos carregam um legado histórico, social, religioso, político, mitológico e estético de valor inestimável, e cujas reflexões atemporais sobre os mais universais aspectos da existência humana são dignas de discussão em todos os níveis da esfera pública – e não apenas entre as quatro paredes de anfiteatros universitários. Certo, a leitura da Ilíada é desafiadora por natureza, não apenas por questões linguísticas (mesmo as mais acessíveis traduções trazem um vocabulário complexo), mas principalmente pela pouca familiaridade que temos com as particularidades do poema épico.
A leitura da Ilíada é desafiadora por natureza, não apenas por questões linguísticas, mas principalmente pela pouca familiaridade que temos com as particularidades do poema épico.
Afinal, é tarefa praticamente impossível compreender o que a tradição originalmente oral da Ilíada representava, de fato, para os gregos quase três mil anos atrás: o que hoje estudamos como literatura era, para a sociedade da época, uma cosmovisão concreta, ou seja, uma concepção de realidade na qual toda a sua sociedade encontrava um alicerce robusto e real.
Viciados no pecado histórico do anacronismo, temos a tendência de projetar nossas concepções contemporâneas nos registros do passado, e assim encontramos uma sensação de estranhamento que permeia toda a obra de Homero: nossos heróis não são mais como Aquiles, cuja cólera orgulhosa é o combustível da história; nossos deuses são menos humanos e falíveis; nossas virtudes, bastante distintas do espírito bélico dos povos helênicos.
Mas é um desafio que vale ser enfrentado: é justamente nessa dissonância entre presente e passado que o leitor contemporâneo pode encontrar grande valor cultural na leitura da Ilíada, pois essa obra atemporal nos fornece uma janela única para um passado em que lenda e história eram um só. Ler a Ilíada no século XXI, portanto, é muito mais que estudar história ou literatura clássica: é transcender os milênios e enxergar o lugar do homem – e de todos os seus deuses – no abismo infinito do próprio tempo.
ILÍADA | Homero
Editora: Penguin;
Tradução: Frederico Lourenço;
Tamanho: 720 págs.;
Lançamento: Fevereiro, 2013 (atual edição).