Na literatura de ficção científica e de fantasia, poucos são os autores – vivos ou não – cujos nomes inspiram tanto respeito quanto o de Ursula K. Le Guin, rainha americana do sci-fi, falecida em janeiro deste ano aos 88 anos. Ao longo de sua extensa carreira, a escritora colecionou as maiores premiações mundiais do gênero, publicando obras que se tornariam verdadeiros clássicos da ficção especulativa, como Os Despossuídos, O Feiticeiro de Terra Mar e A Mão Esquerda da Escuridão.
Este último, apontado pela revista Locus como a segunda maior obra de toda a ficção científica (atrás apenas de Duna, de Frank Herbert), é talvez a mais bela, complexa e relevante de suas narrativas. O que torna a obra cada vez mais atual é o fato de que, além de transcender os artifícios narrativos do sci-fi, A Mão Esquerda da Escuridão é um primoroso ensaio filosófico e antropológico sobre as relações de gênero e suas consequências para o desenvolvimento da civilização. Apesar de lançado em 1969, o impacto do livro nos estudos de gênero é assunto de artigos especializados ainda hoje.
Planeta Inverno
A história tem como foco os conflitos do antropólogo Genly Ai no gélido planeta Gethen (também chamado de inverno), um mundo em plena Era do Gelo e habitado por seres humanos de morfologia única: fundamentalmente andróginas, as pessoas desse mundo possuem um ciclo sexual especial (kemmer) similar ao de outros mamíferos. Durante essa fase, seus corpos dão início a transformações hormonais e anatômicas, e os gethenianos passam a expressar temporariamente características femininas ou masculinas, podendo então fazer sexo e até mesmo engravidar.
Por meio da fenomenal narrativa em primeira pessoa (com outros pontos de vista além do protagonista) e do uso de documentos e lendas orais, Le Guin nos fornece inúmeras informações acerca dos pormenores das civilizações humanas em Gethen – e como as relações de gênero e sexo, tão distintas do resto da humanidade, afetam cada faceta dessas sociedades.
Muito além de oferecer um conceito curioso, a proposta de Le Guin é analisar toda a estrutura da sociedade humana.
Enviado a Gethen pelo Ekumen, espécie de órgão governamental interestelar e sociedade pan-planetária altamente avançada, Genly Ai tem a missão de apresentar às autoridades do planeta as vantagens de “aliar-se ao resto da humanidade” – ou seja, deve convencê-los a se juntarem ao Ekumen. Contudo, inimigos de sua causa conspiram para derrubá-lo, e Genly Ai, para salvar sua vida, é forçado a fugir ao lado do ex-nobre exilado Estraven (todos os gethenianos, embora andróginos, são identificados com o pronome masculino). O clímax dessa saga, uma longa e extenuante caminhada sobre a mais inóspita geleira do planeta, é uma das mais memoráveis passagens de todo o sci-fi.
Antropologia ficcional
Três pontos principais elevam o livro além de um mero exercício especulativo para o nível da literatura propriamente dita e da verdadeira discussão filosófica. O primeiro é o uso primoroso da linguagem, uma das características que diferencia Le Guin de muitos de seus contemporâneos. Dotada de um ritmo e uma sonoridade beirando a poesia, a prosa de Le Guin é econômica, mas sempre estética – fluindo com grande potência e elegância ao mesmo tempo.
O segundo é o extenso trabalho de ambientação. Como parte do Ciclo de Hainish, que inclui outros livros de Le Guin ambientados no mesmo universo, A Mão Esquerda da Escuridão traz descrições vívidas e ricas desse cosmo distinto de todos os clichês da ficção científica. O mundo de Gethen e suas sociedades, tão minuciosamente mapeados pela autora, é um local tão memorável quanto a própria Terra Média.
Por fim, a terceira e principal razão para ler (ou reler) A Mão Esquerda da Escuridão em 2018 é seu papel no desenvolvimento das discussões de gênero no âmbito da ficção literária. Muito além de oferecer um conceito curioso, a proposta de Le Guin é analisar toda a estrutura da sociedade humana face aos papéis reestruturados de sexo e gênero desse mundo fictício. Para isso, a autora realiza um intenso trabalho de antropologia ficcional – cujas conclusões inescapáveis parecem cada vez mais relevantes.
A MÃO ESQUERDA DA ESCURIDÃO | Ursula K. Le Guin
Editora: Aleph;
Tradução: Suzana Alexandria;
Tamanho: 296 págs.;
Lançamento: Outubro, 2014 (2ª edição).