O Ateneu é um dos mais aclamados romances da literatura brasileira do século XIX e narra a experiência traumática de um menino que se vê interno em um colégio direcionado à elite da época. Como um recém-nascido cujo cordão umbilical é rompido, Sérgio – narrador e protagonista – encontra-se sozinho, indefeso e frágil em um ambiente hostilmente desconhecido. No Ateneu, está instaurado o reino da selva, onde impera a lei do mais forte, em termos econômicos e físicos.
A tarefa árdua de posicionar O Ateneu dentro de uma escola literária específica o torna uma espécie de híbrido literário. O naturalismo não suportaria o subjetivismo de uma narrativa que se faz através das impressões de um narrador em primeira pessoa, ou seja, de dentro para fora, e não baseadas no exterior visível e comum, como normalmente ocorre na vertente naturalista.
Lúcia Miguel Pereira já ressaltou essa interioridade, típica dos livros narrados em primeira pessoa, como traço que apartaria a obra de Raul Pompeia das naturalistas por excelência. Embora o meio escolar seja elemento fundamental, motivo basilar do relato, ele não é seu sujeito principal, mas cenário, palco microcósmico que não influencia diretamente as personagens. Estas atuam no colégio como tipos, à maneira como se comportava a sociedade do lado de fora, no macrocósmico território brasileiro. Os papeis assumidos dentro do Ateneu não são condicionados por ele, mas pela hierarquia social reproduzida em maior proporção além dos limites do internato.
Além do mais, a vertente autobiográfica do livro faz com que ele seja mais uma visita a um tempo reinventado do que um retrato fiel daquilo que ocorreu.
Além do mais, a vertente autobiográfica do livro faz com que ele seja mais uma visita a um tempo reinventado do que um retrato fiel daquilo que ocorreu. O passado é agora possível de ser controlado pelo narrador adulto, que quando criança estava sob o controle das autoridades do colégio. Sérgio pode vingar-se no ato de narrar, tomar as rédeas e manipular os eventos e sujeitos como lhe aprouver. Esse é um tópico, aliás, extremamente importante para toda e qualquer análise ou interpretação de O Ateneu: o narrador homem que volta aos seus tempos de infante.
Ainda que adulto e criança aproximem-se demasiadamente na narrativa e a construção do relato faça com que eles sejam quase indistinguíveis, não é o menino que vivencia as situações e as narra em tempo real, mas o homem maduro que, já sabendo o final da história, apropria-se de uma postura consciente e pessoal para narrar o que, enquanto acontecia, ele não adivinharia nem avaliaria do mesmo modo. Isso faz com que a consciência – e, por que não, a inconsciência – do narrador participem significativamente da trama, inevitavelmente manipuladoras.
A preocupação estética exacerbada com o trato da linguagem desvia o livro da objetividade e mesmo da crueza material que poderiam classificá-lo como realista. Sua colocação na escola simbolista daria conta de abranger as especificidades da escrita de Pompeia, mas não abrangeria os outros aspectos da obra, pois embora a linguagem seja de fato um recurso muito bem pensado e trabalhado pelo autor, o livro não se resume a ela. Em suma, O Ateneu carrega consigo um pouco das correntes naturalista, realista e simbolista, sem, contudo, pertencer efetivamente a qualquer uma delas.
Tal hibridismo é verificável desde o início da leitura. A primeira frase, proferida pelo pai de Sérgio, é objetiva, direta e marcante para o restante da narrativa: “– Vais encontrar o mundo – disse-me meu pai, à porta do Ateneu. – Coragem para a luta”. A clareza da sentença, que ressoará durante toda a experiência do narrador no colégio, destoa da ornamentação excessiva e muitas vezes desnecessária da escrita de Pompeia.
Rodrigo Gurgel, em matéria escrita para o Jornal Rascunho (edição 135) sobre O Ateneu, denominou primorosamente o livro de “enfermo de retórica”. De fato, a oratória, atributo tão valorizado para a construção de qualquer obra literária que pretenda atrair a atenção e o interesse dos legentes, na narrativa de Raul Pompéia conquista o efeito oposto. A preocupação desmedida do autor em relação à eloquência de seu discurso torna-se o maior empecilho à leitura, quando deveria ser a maior aliada.
Há quem defenda a ornamentação da linguagem como recurso de suavização dos temas polêmicos levantados por Pompeia em O Ateneu, como a homossexualidade, o assassinato e o retrato de uma organização social opressiva e hipócrita. Esse argumento, no entanto, não é convincente. O adornamento forçado da narrativa menos ameniza a menção aos assuntos censurados do que dificulta gratuitamente sua compreensão. Nesse sentido, a edição publicada pela editora Zahar atua como facilitador e enriquecedor da leitura de O Ateneu. Além do projeto gráfico encantador, ela oferece uma conveniente apresentação da obra feita por Ivan Marques, notas de rodapé preparadas por Aluizio Leite e ilustrações do próprio Raul Pompeia.
Se há um ponto no livro, porém, que mereça congratulações, este é o seu final. Surpreendentemente simbólico, o fim de O Ateneu equivale não só à tomada da liberdade de Sérgio, sua entrada na fase adulta, o inevitável ingresso ao mundo real, como também a ruína de todo um sistema escolar-político-social já insustentável. As últimas páginas da obra, juntamente com as primeiras, são regidas por tudo aquilo que falta no entremeio: assertividade, concisão e impacto.
O ATENEU | Raul Pompeia
Editora: Zahar;
Tamanho: 264 págs.;
Lançamento: Fevereiro, 2015.