Século XIX: uma mulher é levada pelo marido, que é médico, para uma casa de campo, com o objetivo de que se recupere emocionalmente, uma vez há algum tempo ela vem demonstrando certa instabilidade. O local é lindo, porém, ela não gosta de lá, pois há algo estranho acontecendo ali, principalmente no quarto em que ela foi instalada, onde há um papel de parede amarelo um tanto perturbador.
É a partir deste clima bastante sombrio, que me pareceu remeter ao livro A outra volta do parafuso, de Henry James, que a americana Charlotte Perkins Gilman desenvolveu o enredo de O Papel de Parede Amarelo, um conto que flerta com a literatura de horror, mas que também dialoga profundamente com o drama e com as causas feministas.
No filme Anticristo, o polêmico cineasta Lars Von Trier conta a história de um casal que resolve se isolar numa floresta após um grande trauma. Aos poucos, conforme a consciência de isolamento se faz cada vez mais presente, a realidade vai perdendo seus contornos e um tom de pesadelo (traduzido numa espécie de fábula macabra) e violência começa a se instaurar, uma vez que a insanidade parece estender os seus tentáculos com objetivo de estrangular os personagens, que estão o tempo todo tomados por um profundo sentimento de culpa.
Em O Papel de Parede Amarelo, lançado pela editora José Olympio com tradução de Diogo Henriques, há também o isolamento e a aproximação da insanidade, contudo, aqui o que impera não é necessariamente um sentimento de culpa e sim a consciência de uma determinada condição: o peso de ser uma mulher no século XIX. Em ambos os casos, a condução das ações se dá através da violência, tanto física quanto psicológica.
Trata-se, entre outras coisas, de um conto sobre opressão. A protagonista vê o seu destino sendo conduzido pelos homens ao seu redor, desde os médicos e seus diagnósticos equivocados, até alguém bem próximo: “Se um médico de renome, que vem a ser o meu próprio marido, assegura aos amigos e parentes que não se passa nada de grave, que se trata apenas de depressão nervosa passageira – uma ligeira propensão à histeria -, o que se pode fazer?”.
A protagonista vê o seu destino sendo conduzido pelos homens ao seu redor, desde os médicos e seus diagnósticos equivocados, até alguém bem próximo.
Mais do que ser mantida isolada, a personagem é impedida de desenvolver suas atividades (a recomendação é que ela esvazie a sua mente), sempre com o argumento de que ela não pode trabalhar para que a sua condição frágil não seja afetada e não se torne ainda mais instável, prejudicando, por exemplo, a criação de seu filho, o qual fica aos cuidados de outrem.
Pesa sobre a personagem a sombra ostensiva de não cumprir fidedignamente o papel submisso pré-estabelecido para uma mulher do período: ser mãe, do lar, etc. Ela se sente incapaz de ser tudo aquilo que esperam dela, ou talvez melhor do que isso: ela simplesmente não quer cumprir esse papel, mas se sente absolutamente oprimida.
O clima de insanidade e de crítica ao patriarcado ganhou eco, séculos depois, no livro Dias de Abandono da escritora sensação do momento, Elena Ferrante. Ali também, principalmente no trecho sobre a fechadura do apartamento, vemos a angústia e o desespero tomarem seu espaço, enquanto a realidade se esfarela diante de uma estrutura familiar movida a um teatro social completamente falido.
A protagonista do conto vê a sua vida ser conduzida por escolhas alheias, já que nunca lhe é permitido ter voz ativa. Sempre que ela diz o que pensa, é recebida com algum tipo de brincadeira por parte do marido, que parece ser incapaz de percebê-la como um ser humano normal, pensante, com falhas e potenciais etc. O objetivo dela, portanto, é tentar manter-se sã diante de uma sociedade que simplesmente não faz sentido, uma vez que é conduzida por regras e costumes injustos e absurdos.
Por possuir diversas chaves de leitura, chega a ser espantosa a capacidade de Gilman em condensar tantos temas complexos (maternidade, relação marido-esposa, emancipação feminina, direitos das mulheres, etc.) num espaço tão curto e ainda mais no período histórico em que o conto foi publicado. Uma coisa interessante é que o enredo jamais avança de maneira acelerada, o que provavelmente prejudicaria demais na construção do suspense, já que o livro não é apenas um panfleto feminista. Pelo contrário, cada passo da narrativa parece ter sido milimetricamente pensado e repensado em seu valor literário, de modo a criar perturbação e ao mesmo tempo reflexão. Neste sentido, este é um claro exemplo de triunfo da arte.
Em 1892 Charlotte Perkins Gilman já tratava de assuntos que soam bastante atuais mesmo em 2017. Temos que destacar o quanto ela estava à frente de seu tempo e o quanto nós, mais de 100 anos depois, ainda chafurdamos no atraso.
O PAPEL DE PAREDE AMARELO | Charlotte Perkins Gilman
Editora: José Olympio;
Tradução: Diogo Henriques;
Tamanho: 112 págs.;
Lançamento: Março, 2016.