É impossível ler Os tais caquinhos, da cearense Natércia Pontes, sem que toque na mente aquela música da Marina Lima e Antonio Cícero em que esse verso ficou famoso. É, inclusive, a epígrafe do romance: “para começar, quem vai colar os tais caquinhos do velho mundo?”. Os caquinhos ressoam durante toda a leitura da obra de Natércia: são pequenos resquícios, lascas da vida cotidiana que habitam o ar quase insalubre de três pessoas – Abigail, a narradora, sua irmã Berta e seu pai Lúcio – em plena Fortaleza nos anos 90.
Os tais caquinhos, portanto, é um livro de tom minimalista: não se debruçará sobre grandes acontecimentos, grandes dramas, grandes tragédias. O que acompanhamos é o que resta num apartamento quando a mãe, Zoma, junto de duas filhas, Huga e Ariel, vai embora, deixando para trás outras duas filhas e um ex-marido, num apartamento atulhado. Logo na apresentação, na orelha, já lemos: “faltava muita coisa no apartamento 402. Mas sobravam muitas outras: caixas de papelão, bandejas de isopor, cacarecos, baratas, cupins, muriçocas, poeira, copos sujos”. Há então uma espécie de alegoria sobre um lar sem mãe.
A história imaginada por Natércia, como já dito, transcorre pelo olhar da irmã mais velha, Abigail, que vive no fatídico apartamento 402, emaranhado de tralhas e lembranças de momentos mais organizados. Praticamente não há comida: uma das poucas lições emitidas por Lúcio às filhas é a frase “é muito bom sentir fome”. Eventualmente, o pai – que habita bares, tomando sua cervejinha – leva as filhas a restaurantes para comer a única refeição do dia. Noutras vezes, as vizinhas doam ovos para as meninas. Ambas tentam dar um jeito: enquanto Berta cola na amiga mais rica e praticamente some do 402, Abigail vai vivendo como dá, frequentando o colégio quando quer e, eventualmente, descobrindo o mundo.
A família parece menos miserável do que caótica: a bagunça dessa “terra arrasada” é um reflexo do seu interior desorganizado.
Esta tal descoberta do mundo por parte de Abigail é o que ajuda a categorizar Os tais caquinhos como um romance de formação – aquele tipo de livro que aborda o processo de amadurecimento e aprendizado de um personagem, geralmente acompanhando sua fase de crescimento. O que vemos, então, é uma adolescente que, de um jeito ou de outro, vai se acomodando numa vida meio arrastada, sem muitas orientações e nem muitas ambições. Abigail simplesmente vai existindo, em meio à pilha de coisas, cheiros e texturas que a cercam. Por isso mesmo, o romance (organizado como uma espécie de diário) explora bastante a descrição.
Os personagens, por exemplo, são simbolizados por pequenos signos que o cercam (como a calça jeans desbotada de Lúcio, seus longos fios de barba, o cabelo pintado desbotando de Abigail, parecendo menstruação), enquanto o mundo no entorno da família, por conta da escassez, é descrito de forma criativa: “eu e Berta nos tornamos craques em inventar comidas. Embora preferíssemos sequências infinitas de colheradas de leite Ninho e farinha láctea (ambos deixando uma camada sólida e espessa no céu da boca), infelizmente tínhamos que lidar com o que dispúnhamos: água e sal. Aumentávamos nossa pressão arterial consumindo amostras de sal Cisne embaladas em numerosos saquinhos afanados dos restaurantes para os quais Lúcio vez por outra nos convidava”.
A família parece menos miserável do que caótica: a bagunça dessa “terra arrasada” é um reflexo do seu interior desorganizado – especialmente de Lúcio, o pai, a quem teoricamente caberia por a ordem. Essa estratégia de narrar a falta de rumo na vida de Abigail e seus parentes por meio de objetos me lembrou, de certa maneira, a “coleção de solidões” de Miranda July. Da mesma forma que a artista norte-americana, Natércia Pontes parece ter um talento especial para “caçar” o que há de humano nas nossas miudezas diárias. Consegue aqui criar um livro estranho, ao mesmo tempo que profundamente comovente e terno.
OS TAIS CAQUINHOS | Natércia Pontes
Editora: Companhia das Letras;
Tamanho: 251 págs.;
Lançamento: Fevereiro, 2021.