Se tem uma coisa que eu gosto nessa vida é ser enganado. Mas só pela ficção, ok? Sabe aquela cara de tapado que a gente fica depois de ver O Sexto Sentido pela primeira vez? Tipo aquilo, eu adoro.
Dias desses estávamos vendo um filme espanhol bem bom chamado Um Contratempo e antes de iniciar o segundo ato a minha mulher soltou um “tá na cara que o assassino é o mordomo” (ok, não foi isso que ela disse, mas você entendeu, não vou soltar spoiler do filme aqui). Eis que o final chegou e era exatamente o que ela tinha falado. Resultado: joguei um frango congelado na cara dela. Mentira, só lancei um olhar de “Você estragou o filme!”.
Na literatura, esse ânsia por criar teorias que estejam furadas é ainda maior, pois em geral o livro nos toma muito mais tempo que um filme, então eu exijo ser surpreendido, faço questão de que a culpa não recaia sobre o mordomo, pois não quero ler o que já sei. É claro que sempre vou esperar que o autor tenha pensando em coisas que jamais passariam pela minha cabeça, caso contrário ele nem mereceria meu rico dinheirinho. O livro Por trás de seus olhos, da britânica Sarah Pinborough, lançado pela editora Intrínseca com tradução Alexandre Raposo, é bastante feliz nisso de nos fazer de besta, no bom sentido, pois me parece meio impossível antecipar aquele final.
Num primeiro momento, a trama parece roubada de algum filme do Supercine: Louise, uma mãe solteira que trabalha como secretária numa clínica, um dia sai para beber, fica com um cara desconhecido no bar e no dia seguinte descobre que ele é David, o novo psiquiatra que chegou de Londres para trabalhar na mesma clínica. É isso, fodeu, ele é o seu novo chefe. Eles tentam evitar um relacionamento, mas vocês sabem como é a moralidade flexível dos hormônios em fúria. O detalhe não tão surpreendente é que ele é casado com uma linda mulher chamada Adele, já o detalhe surpreendente mesmo é que Adele também se aproximará de Louise, só que sem o marido e Louise saberem que ela sabe do caso dos dois.
O livro Por trás dos seus olhos, da britânica Sarah Pinborough, lançado pela editora Intrínseca com tradução Alexandre Raposo, é bastante feliz nisso de nos fazer de besta, no bom sentido, pois me parece meio impossível antecipar aquele final.
Falando assim parece um episódio rocambolesco de Jane the Virgen, só que sem a parte das piadas, mas o fato é que essa confusão aí é só a ponta de um iceberg todo feito de tretas conspiratórias cada vez mais sofisticadas. Afinal, quem sabe o quê? Quem manipula quem nesse triângulo amoroso? O que caralhos essas mulheres estão tramando?
Não dá pra dizer muito mais do que isso sobre o enredo sem estragar a experiência do leitor. [highlight color=”yellow”]O que é possível adiantar é que é uma leitura das mais viciantes[/highlight], acho que li em dois dias entre filas de espera, intervalo de aulas, cafés, almoço e idas ao banheiro. A senhorita Pinborough é boa nisso de escravizar o coitado do leitor que, de quando em quando, precisa interromper a leitura para, sei lá, viver um pouco.
O canto da sereia da autora envolve alguns recursos manjados e outros nem tanto. [highlight color=”yellow”]Os ganchos ao final do capítulos estão na cartilha dos bons suspenses e são simplesmente irresistíveis[/highlight], mas a grande sacada mesmo está na estrutura narrativa e na arquitetura bem planejada do enredo. A escritora vai alternando os pontos de vistas das duas protagonistas, sempre em primeira pessoa, ao passo em que vai soltando flashbacks em terceira. Ok, não é nada original, mas funciona bem que é uma beleza.
O mais divertido disso é que em diversos momentos as informações que o leitor vai colhendo, pra tentar criar um mapa mental do que está rolando, parecem contraditórias, não apenas por haver dados insuficientes, mas também porque é impossível acreditar plenamente no que dizem as narradoras, uma vez que é bastante provável que alguma delas esteja mentindo. Em resumo: não dá pra confiar em ninguém nesse livro, só tem gente falsa, parece certas redes sociais.
Esse jogo com os diferentes pontos de vista narrativos lembra bastante A Garota no Trem, da Paula Hawkins, e até certo ponto também se aproxima de Garota Exemplar, embora não da maneira tão impactante como Gillian Flynn o fez.
A prosa de Pinborough é a de um thriller convencional, então não tem grandes arroubos linguísticos, pois não dá tempo de brincar de Guimarães Rosa numa história tão acelerada. O ritmo urgente, sempre alimentando uma sensação de que algo muito terrível acontecerá na próxima página, é uma das coisas mais legais do livro, assim como as reviravoltas.
O final do livro pode dividir opiniões, pois a saída pela qual a autora optou foge bastante do óbvio, mas ao mesmo tempo é algo que pode testar nossa fé naquela narrativa, mesmo que não chegue necessariamente a apelar para um Deus ex machina. Eu mesmo fiquei sem saber direito o que pensar quando terminei, pois num primeiro momento fiquei ligeiramente decepcionado, para logo na sequência pensar que no fundo foi uma opção divertida e inusitada.
A questão toda talvez seja repensar o gênero literário daquilo que acabamos de ler, dependendo das conclusões a que você chegar a respeito disso, o livro pode ser sensacional. Creio que no fim das contas o caminho é mais interessante do que o destino em si, mas enfim, vale a viagem, vá lá, pegue o livro e veja o que há por trás desses olhos.
POR TRÁS DE SEUS OLHOS | Sarah Pinborough
Editora: Intrínseca;
Tradução: Alexandre Raposo;
Tamanho: 345 págs.;
Lançamento: Agosto, 2017.