“De quem é o olhar/ Que espreita por meus olhos?/ Quando penso que vejo,/ Quem continua vendo/ Enquanto estou pensando?”
(Fernando Pessoa)
Uma mulher acaba de se confessar para o padre e começa a rezar. São várias e várias orações entoadas nos mais diversos tons. A câmera, que nos mostra o rosto da mulher para que possamos sentir a sua angústia, desce lentamente e mostra que ela está usando um vestido. O plano desce mais um pouco e então percebemos que um de seus pés está descalço. Onde estaria o sapato que falta? A câmera então começa a percorrer os bancos da igreja feito a visão de um caçador, mas aparentemente não há nada ali. Quando chega do lado de fora, temos uma aceleração, como se o cameraman estivesse correndo pelas ruas, passando por lojas, bancos, etc. Eis que a câmera chega então a um bosque e após afastar diversos galhos pelo caminho a câmera finalmente para, pois encontra o que tanto procurava: ali no chão está o outro sapato e, ao lado dele, o corpo de um menino morto. Fim.
É possível traduzir o cinema em palavras? A linguagem escrita é suficiente para reproduzir aquele mundo que observamos na tela? Em Short Movies, publicado pela editora Dublinense, o escritor português Gonçalo M. Tavares não chega a responder essas questões, mas se esforça para problematizá-las.
Se hoje temos uma literatura que busca emular o cinema através da velocidade narrativa presente principalmente nos thrillers, o escritor português também tenta dialogar com essa linguagem, mas segue um caminho contrário, pois tenta se aproximar da lentidão, da imagem estática, que ganha movimento mais com o deslocamento da câmera do que com a ação dos personagens. Neste jogo experimental, é o ponto de vista do narrador/enquadramento que conduz a narrativa e não necessariamente o enredo. Um homem parado na esquina é só um homem parado na esquina, mas se a câmera se afastar um pouco mais, abrindo o plano, e vermos que no chão há um corpo caído aos seus pés, aí talvez tenhamos uma história.
O livro é composto por mais de 60 fragmentos de histórias sem começo nem fim. É isso mesmo, é como se chegássemos no meio da sessão de cinema e ainda fossemos mal educados o suficientes para sairmos antes de terminar. Temos, portanto, acesso apenas há um pequeno trecho (“imagem”) da história e a partir daí fica por nossa conta imaginar o enredo. Quem é o garoto morto na floresta ali no conto (conto?) “O Sapato”? É o filho da mulher na igreja? Ela o matou? Por quê? Gonçalo não explica nada, você que se vire. Mas não se preocupe, não há hermetismos exagerados de intelectual cabeçudo querendo pagar de inteligentão, pois os Short Movies são pequenos flashs razoavelmente simples que, dependendo da leitura, podem ou não conter signos mais profundos.
Se hoje temos uma literatura que busca emular o cinema através da velocidade narrativa presente principalmente nos thrillers, o escritor português também tenta dialogar com essa linguagem, mas segue um caminho contrário.
Esse aspecto de micro narrativa que em geral se dá quase de forma estática, como pequenas fotografias, ironizando inclusive a ideia de que cinema é imagem em movimento, faz lembrar os trabalhos do cineasta sueco Roy Andersson. Filmes como Vocês, os Vivos e Um Pombo Pousou num Galho Refletindo Sobre a Existência também utilizam o enquadramento fixo para contar fragmentos de histórias curtas, cujo enredo é sempre insuficiente e fica a cargo do expectador preencher as lacunas.
Se nos dias de hoje a imagem costuma ser a forma mais prática e reconhecida de comunicação, vide o sucesso dos vloggers por aí, e dada também uma suposta urgência que permeia as relações/ações humanas, há uma possibilidade de que este livro seja lido de forma bem equivocada. Jamais saberia o jeito certo de se ler um livro (e mesmo que soubesse não sairia palestrando por aí), mas o que o autor propõe aqui, como bem menciona Reinaldo Pujol Filho na orelha desta edição, é uma leitura que precisa ser feita com calma, tal como a poesia. Quem escreve sobre livros, em geral, acaba lendo pelo menos uma obra por semana e no meio dessa correria poderia incorrer no erro de acelerar uma leitura que prima pelo contrário, pela desaceleração, pela contemplação. Nada pior do que o desserviço de não alcançar a grandeza de uma obra e, ao escrever a respeito dela, acabar afastando eventuais novos leitores. É que um livro assim, tão pouco convencional, sem enredo, pode parecer superficial e meio bobo se lido com pressa, quando na verdade trata-se de uma obra interessante e profunda, que pode até não ser a melhor porta de entrada para quem nunca leu nada do autor, mas que discute os limites da linguagem de uma maneira bastante sofisticada, brilhante até.
Tavares é, sem dúvidas, uma das vozes mais relevantes da literatura contemporânea. Quem já teve a oportunidade de ler livros como Uma Viagem à Índia e Matteo Perdeu o Emprego, sabe que está diante de uma grandiosidade literária pouco vista nos dias de hoje. Temos, é claro, vários bons escritores em atividade, mas pouquíssimos atingem o nível de excelência de Gonçalo. Quando José Saramago, em 2005, disse “Ele não tem o direito de escrever tão bem apenas aos 35 anos: dá vontade de lhe bater!” ele exprimiu de maneira bem humorada a nossa perplexidade diante do conjunto de uma obra poderosa que tanto encanta quanto perturba.
SHORT MOVIES | Gonçalo M. Tavares
Editora: Dublinense;
Tamanho: 96 págs.;
Lançamento: Janeiro, 2015.