O Jogo da Amarelinha – uma das obras-máximas de Julio Cortázar (1914 – 1984) – nasceu quanto o escritor argentino acreditava que já tinha atingido seu máximo com os contos fantásticos. Dessa combinação de insatisfação e deslumbre, Cortázar deu corpo a um romance fragmentado, em gomos, e cuja história se mistura à sua própria vida em Paris. Como Cortázar, Horário Oliveira é um hermano exilado na Cidade Luz, um fugitivo de uma realidade nua e crua, vivendo em uma espécie de vórtice temporal alimentado por cigarros, álcool, maconha, jazz e a paixão pela enigmática – e uruguaia – Maga.
Todos os personagens que circulam pel’O Jogo da Amarelinha representam alguma espécie de distanciamento da realidade, de escape e introspecção. E por isso, boa parte das gentes às quais o argentino deu vida no livro representa os conflitos de uma juventude em risco e em dúvida. Por meio de dilemas existenciais e proclamações íntimas de independência, o livro parecer externalizar uma rebeldia contida – a mesma rebeldia da qual falaria dez anos mais tarde Chico Buarque em “Apesar de você”.
E é isso que faz d’O Jogo da Amarelinha uma construção ousada em forma e conteúdo. Se por um lado é um romance cheio de reentrâncias narrativas e hiperlinks que carregam o leitor para dentro e fora da obra – existe inclusive uma playlist no Spotify com as canções de jazz que Cortázar cita ao longo do livro –, por outro é um hino de amor à liberdade e à idealização do amor e das relações. Cortázar subverte os sentidos do romance e do conto ao criar uma simbiose literária entre ambos, impedindo que a obra seja dissociada de ambas as formas de narrar. E qualquer incursão em tentar explicar os caminhos tomados pelo autor parece levar aos caminhos bifurcados de Borges e aos bosques de Eco.
É interessante pensar O Jogo da amarelinha sob a perspectiva do isolamento.
Cortázar – que, justamente, diluiu na fragmentação o peso de tamanha narrativa – recria os anos loucos da década de 1960 sem deixar de espelhar nessa mesma loucura, criativa e pessoal, o medo e o pavor que se alastravam pelo perigo constante de uma guerra nuclear e pelo assomo das crises que tomavam de assalto a América Latina e que, claro, desembocariam nos regimes militares que governariam o continente nos anos seguintes. “A busca do ‘outro’. Sim, é o tema central e a razão de ser de O Jogo da Amarelinha”, afirma Cortázar em carta a Graciela de Solo e que acompanha a edição lançada em 2019 pela Companhia das Letras.
Talvez, por apresentar sempre personagens em rota de colisão – contra tudo e contra todos – O Jogo da amarelinha se mantenha como uma síntese da juventude e do desejo de ser jovem.
Homem em fuga
Essa mesma busca pelo outro percorre muito dos seus contos – como “Casa tomada”, que abre Bestiário, ou “As Babas do Diabo”, de As Armas Secretas, e base para o clássico Blow up, de Antonioni –, mas em O Jogo da Amarelinha que Cortázar consegue maximizar as ambiguidades das relações. Seja no tecer de um exílio forçado da primeira parte ou na saudade que Horácio sente de Maga, na segunda, e que projeta em Talita, Cortázar reconstrói os contrapontos de um homem em fuga e, em algum sentido, distante de tudo, até mesmo de si.
É interessante pensar O Jogo da Amarelinha sob a perspectiva do isolamento. Alojado dos seus, Horácio se refugia no Clube da Serpente, uma espécie de sociedade que forma com outros párias e merdunchos em Paris. É durante as reuniões do grupo que se ouve jazz, discute-se Sartre e fala-se do mundo que despencava lá fora. E é em um desses encontros que o bebê de Maga morre, rompendo as relações dela com aquele mundo.
Talvez, por apresentar sempre personagens em rota de colisão – contra tudo e contra todos – O Jogo da Amarelinha se mantenha como uma síntese da juventude e do desejo de ser jovem. Mas essa não é a ambição de viver para sempre, mas de se morrer cedo.
O JOGO DA AMARELINHA | Julio Cortázar
Editora: Companhia das Letras;
Tradução: Eric Nepomuceno;
Tamanho: 592 págs.;
Lançamento: Junho, 2019 (atual edição).