Os 33 contos que compõem a obra do escritor mineiro Murilo Rubião, pioneiro do realismo mágico brasileiro, foram publicados em seis coletâneas ao longo de três décadas: O ex-mágico (1947), A estrela vermelha (1953), Os dragões e outros contos (1965), O pirotécnico Zacarias (1974), O convidado (1974) e A casa do girassol vermelho (1978). Felizmente, esse conjunto pode ser encontrado na excelente edição Obra completa, da Companhia das Letras (2016).
Carregada de elementos insólitos que, como é costumeiro no realismo mágico, são tratados com estranha naturalidade por parte das personagens centrais, a primeira coletânea de contos do autor precede em duas décadas a publicação original de Cem Anos de Solidão, que alçaria o realismo mágico latino-americano à fama internacional.
O contista é conhecido por sua quase obsessiva forma de produção: muitos dos contos presentes nos livros posteriores são modificações e atualizações de contos antigos, refletindo o perfeccionismo do escritor em relação à exatidão de sua prosa e do efeito que buscava criar em cada narrativa.
Reunidos, os 33 contos de Rubião, mesmo publicados em diferentes épocas, formam um todo que se articula habilmente entre suas partes. Em termos de estilo, a prosa do autor permanece praticamente inalterada ao longo de sua obra, graças às extensas revisões que realizou ao longo de sua carreira, dando ao conjunto final de contos uma coesão atípica para textos escritos em décadas tão distintas.
Reunidos, os 33 contos de Rubião, mesmo publicados em diferentes épocas, formam um todo que se articula habilmente entre suas partes.
O léxico empregado por Rubião é de simples apreensão e sua prosa evita floreios estilísticos. Talvez o aspecto mais atípico do vocabulário empregado pelo contista mineiro seja o nome de diversas personagens: enquanto alguns carregam nomes tipicamente brasileiros (como Bárbara, Cris e Pedro Inácio), outros têm nomes mais exóticos, que frequentemente remetem ao grego (como Gérion, Galateu e Galimene).
Paradoxalmente, os contos de Rubião parecem, assim, ter como espaço cenários tipicamente brasileiros, mas não é possível estabelecer uma localização geográfica específica para nenhuma de suas narrativas, que parecem transcorrer em um universo inteiramente muriliano.
Obra completa reúne contos como “O Ex-Mágico da Taberna Minhota”, em que o narrador, um mágico que descobre ter poderes sobrenaturais durante uma apresentação na epônima Taberna, encontra grande sucesso profissional graças ao surgimento inexplicável de seus dons. O sucesso, porém, culmina em uma terrível depressão. O narrador é um típico protagonista de muriliano, condenado à angústia e ao vazio existencial pelo surgimento dos elementos insólitos ou absurdos na trama. O ex-mágico sequer consegue cometer suicídio, pois seus poderes o impedem; passa a trabalhar como funcionário público para morrer lentamente. Seus dons o abandonam aos poucos e, em um último golpe de ironia, termina por lamentar a perda das habilidades mágicas que outrora repudiou.
O mito de Sísifo e o homem-uroboro
Ricamente povoados de personagens como o ex-mágico, o pirotécnico Zacarias, o coelho Teleco e outras figuras mágicas de grande complexidade psicológica, os contos de Rubião estabelecem uma mitologia autoral, mas cujas raízes podem ser atribuídas a alguns mitos clássicos.
De especial relevância para a compreensão da mitologia muriliana são o mito de Sísifo e a imagem do uroboro, a serpente cósmica que devora a própria cauda em eterna alternância entre princípio e fim. Em Murilo Rubião: A poética do uroboro (1981), Jorge Schwartz define o que chama de “homem uroboro” como figura central da obra de Murilo Rubião. O homem uroboro é comparado a Sísifo, o eterno condenado da mitologia grega, forçado pelos deuses a empurrar uma enorme rocha ao alto de uma montanha — um esforço infinitamente fútil, pois a pedra sempre acaba por rolar até o pé do declive.
Os protagonistas de Rubião (todos homens, sem exceção) frequentemente encarnam o sofrimento de Sísifo, condenados à fútil repetição de ciclos dos quais parece que jamais encontrarão escapatória. Este fato levou à classificação de Rubião como um autor do Absurdo por parte de alguns críticos, aproximando-o da filosofia de Camus.
Assim, Sísifo e o homem uroboro seriam representações do Absurdo; em outras palavras, do conflito entre a tendência humana de buscar um sentido ou um conjunto de valores inerentes à vida e à existência em um universo que parece carecer absolutamente de sentidos pré-estabelecidos.
Schwartz propõe que o protagonista de Rubião, como no caso do ex-mágico, nunca poderá ser imaginado como um “Sísifo feliz”, porque se mostra duplamente trágico: ao invés de ajudá-lo a superar sua condição absurda, sua lucidez em meio a um mundo sem sentido é o que acaba por condená-lo irrecuperavelmente.
Curiosamente, a própria escrita de Rubião, quase excessivamente revisada e reapresentada em sucessivas edições, remete a essa mesma ideia de um ciclo do qual o autor não escapa, tornando-se ele próprio essa espécie de Sísifo moderno, esse homem uroboro representado por seus trágicos protagonistas.
Por esses (e muitos outros) motivos, a obra de Rubião permite sucessivas releituras a diferentes níveis de complexidade, e merece ser reconhecida como uma voz única no cânone do realismo mágico internacional.
OBRA COMPLETA | Murilo Rubião
Editora: Companhia das Letras;
Tamanho: 288 págs.;
Lançamento: Junho, 2016.