De certa forma, enquanto matéria artificial extraída da realidade, toda ficção é fantasia. Movidas pela combustão do factível, as narrativas fictícias transformam em existência o inexistente – esculpindo, no barro da própria verdade, mundos ainda mais reais do que este.
Com base apenas nas prateleiras das livrarias, contudo, não seria difícil concluir que “fantasia” é um mero nicho literário, composto apenas por séries como As Crônicas de Gelo e Fogo. A seleção das obras dispostas nessa seção resume toda a fantasia a dragões e elfos, magia e castelos, espadas e monstros e reis. Ao renegar à palavra significado além desse estereótipo, ignora-se que o fantástico é a base estrutural de muitos outros gêneros e vertentes narrativas. Da ficção científica ao horror, do surrealismo ao realismo mágico, da Ilíada a Harry Potter – o fantástico perpassa não apenas as listas de best sellers, mas os próprios clássicos da literatura.
Apesar de ocupar espaço crucial em todas as formas de arte, é no literário que o fantástico encontra seu solo mais fértil.
Mas não é a natureza acadêmica da fantasia que me proponho a discutir nestas linhas. Escrevo este texto porque realmente acredito que o fantástico importa – e, mais do que nunca, importa não apenas como objeto de estudo (um exercício intelectual e criativo), mas como agente transformador da própria realidade.
Ao mesclar imaginário, real e mitológico, o fantástico fornece uma excelente porta de entrada para o infinito universo das artes, especialmente para a literatura. De fato, ainda me lembro do primeiro livro que realmente amei: uma velha cópia ilustrada de O Hobbit, em inglês, que meu pai traduzia para mim nas férias escolares (o duelo de charadas entre Bilbo e Gollum permanece, em minha memória, a mais épica batalha de toda a ficção). Graças às sessões de histórias, aventuras e contos de fada, eu compreendi o poder de transformação da palavra escrita antes mesmo de aprender a ler.
Leia também
» Abraçando a escuridão com H. P. Lovecraft
» ‘A Metamorfose’, de Kafka, faz cem anos e ainda diz muito sobre a nossa vida
Pois, apesar de ocupar espaço crucial em todas as formas de arte, é no literário que o fantástico encontra seu solo mais fértil. A linguagem escrita permite estímulos ímpares da imaginação, pois fornece ao leitor apenas as ferramentas necessárias para que possa agir como sujeito na construção de sua própria fantasia. O indescritível inseto em que se transforma Gregor Samsa, em A Metamorfose, de Kafka; os ventos que arrebatam Macondo, a Colômbia metafórica de Gabriel García Márquez, cerne geográfico de Cem Anos de Solidão; os horrores cósmicos e atemporais de H. P. Lovecraft, soterrados em mausoléus e cidadelas não-euclidianas; estes e outros conceitos fantásticos, enraizados na linguagem literária, desafiam tentativas de representação em outros meios, como o audiovisual.
É graças a essa capacidade infinita de acender o imaginário – de fornecer novas formas de interpretar o real – que a literatura especulativa tem, em tempos de escuridão, o poder de iluminar o mundo. Por isso, repito: o fantástico importa.
Seja nos panteões contemporâneos de Neil Gaiman, nas realidades múltiplas de Philip K. Dick, no mundo subterrâneo de Júlio Verne ou na Tóquio paralela de Haruki Murakami: encontramos, na fantasia, um mundo de espelhos. São reflexos não apenas do que somos, mas também do que seremos – e, principalmente, vislumbres de tudo que sempre fomos.